Caminhos Cruzados (2024)

A união pela diferença

título original (ano)
Crossing (2024)
país
Suécia, Dinamarca, França
gênero
Drama
duração
105 minutos
direção
Levan Akin
elenco
Mzia Arabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanl
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

Este drama parte dos códigos mais convencionais do melodrama clássico. Antes de morrer, uma mãe transmite seu último pedido à irmã: que reencontre a filha, expulsa de casa, e a traga de volta à cidade de Batumi, na Geórgia. A contragosto, Lia (Mzia Arabuli) aceita a tarefa, assim como a companhia do adolescente Achi (Lucas Kankava), que se oferece a acompanhá-la. Para a mulher, o garoto pode servir de tradutor na Turquia. Para ele, trata-se da oportunidade de fugir de um lar abusivo.

Adivinha o que acontecerá em seguida? Sem receio de oferecer qualquer spoiler decisivo, pode-se antecipar que estas figuras totalmente diferentes (ele, progressista e malandro; ela, convencional e rígida) se aproximarão, tornando-se amigos inseparáveis ao longo de uma jornada repleta de imprevistos. A exemplo dos principais road movies e buddy movies, interessará pouco o destino onde chegarão — o cineasta Levan Akin privilegia as experiências acumuladas no trajeto.

O principal motivo de desconforto nesta travessia diz respeito à identidade de gênero da sobrinha: Tekla foi rejeitada pelos familiares por ser uma mulher trans. No passado, Lia demonstrava afeto pela sobrinha, porém alimentou o asco após o afastamento, graças ao imaginário preconceituoso de prostituição, doenças e da “escolha” de um modo de vida considerado sórdido. O deslocamento rumo à Turquia consiste no confronto forçado a uma realidade que a heroína imaginava, mas jamais havia conhecido de fato. Uma perda da inocência, portanto.

Embora siga um formato anacrônico de representação de gênero e sexualidade, a partir da roupagem acadêmica, Caminhos Cruzados consegue evitar as principais armadilhas destas produções.

A estratégia de humanizar pessoas preconceituosas, ensinando por tabela o espectador sobre o respeito e a tolerância, constitui uma estratégia questionável no século XXI. Diversos cineastas queer já compreendem a importância de colocar indivíduos LGBQTIA+ na posição de protagonistas, controlando o ponto de vista e a narrativa, ao invés de serem enxergados em terceira pessoa. Além disso, a comunicação com o espectador presumido cis-hétero tem se rompido: por que não oferecer filmes centrados em indivíduos queer, para indivíduos queer, de maneira que possam se identificar com as personagens na tela?

Embora siga este formato anacrônico de representação de gênero e sexualidade, a partir da roupagem acadêmica (trata-se de um filme que obviamente visa os grandes festivais e premiações), Caminhos Cruzados consegue evitar as principais armadilhas destas produções. Em primeiro lugar, Lia nunca se converte numa mulher generosa e defensora das minorias. Ela baixa suas guardas, porém preserva o aspecto sisudo do início. O garoto tampouco se comporta às mil maravilhas graças à convivência com esta mãe simbólica.

Em segundo lugar, a ativista trans que ajuda a dupla a encontrar Tekla tampouco corresponde ao imaginário da fada madrinha exclusivamente virtuosa. A mulher foge aos estereótipos da prostituição e da carência afetiva, porém demonstra suas fraquezas. O roteiro sublinha a capacidade limitada de ajuda que Evrim (Deniz Dumanli) pode fornecer, partindo dos recursos limitados em um país conservador. Além disso, ela precisa resolver pendências em âmbito profissional e universitário. É louvável que o longa-metragem a considere nestas dimensões.

A construção dos atores e a maneira como são dirigidos contribuem à sobriedade do resultado, em oposição ao tom sentimentalista no qual poderia facilmente cair. Mzia Arabuli encontra diversas nuances a partir do semblante taciturno, e surpreendendo com belíssimos instantes de leveza nas sequências do jantar e do sonho, rumo ao final. Deniz Dumanl também apresenta destreza nas expressões ambíguas face aos homens que a antagonizam. Akin, inclusive, abre as portas para que um romance saudável apareça na vida dela num futuro pós-narrativa. Há evidente ternura em relação a estas figuras, algo que jamais se transforma em condescendência.

Em contrapartida, certo teor paternalista persiste na descrição de duas crianças em situação de rua. São vistos como pequenos anjos, talentosos e cedendo à criminalidade por falta de oportunidades. O longa-metragem romantiza as noites dos garotos (vide as belas silhuetas douradas enquanto reviram o lixo), demonstrando a dificuldade em obter deles alguma variação ou ambiguidade. O cineasta possui maior conforto em representar a comunidade LGBTQIA+ do que outras formas de exclusão social, com as quais procura desajeitadamente compará-la. A crença de que “todas as marginalidades se equivalem” sempre resultou em simplificações perigosas ao equiparar homofobia, transfobia, racismo, machismo, pobreza, etc. 

O título original, Crossing, diz respeito às diversas formas de travessia abordadas: aquela entre países, entre culturas, e sobretudo, entre gêneros, no caso das mulheres trans. Indica, inclusive, uma dinâmica de atravessamentos, termo cada vez mais comum para entender o modo como as demandas plurais, entre distintas formas de marginalidade, se retroalimentam. No Brasil, a versão Caminhos Cruzados estreita estas leituras, ainda que preserve a noção de transporte, transexualidade, transição. O conceito de travessia, para o longa-metragem georgiano, possui sentidos amplos.

Por fim, o roteiro demonstra certa maturidade ao explorar, da melhor maneira possível, o formato desgastado de world cinema aplicado à lógica LGBTQIA+. “Você tem certeza de que Tekla deseja ser encontrada?”, pergunta Evrim à dupla, que jamais havia cogitado a possibilidade de que a garota esteja muito bem, obrigado, em sua nova vida. Existe uma forma de respeito, ainda elegante e distanciado, neste mergulho entre o cinema popular e um cinema voltado à sensibilidade média da crítica internacional. Torna-se uma obra de poucos riscos estéticos, porém dotada de rara maestria dentro da fórmula proposta.

Caminhos Cruzados (2024)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.