Há muitos elementos se (des)encontrando neste filme aqui. Até a janela (a proporção da imagem) soa indecisa na cena inicial: o quadro se abre num formato próximo do quadrado, volta ao scope mais retangular, e retorna ao quadrado. Os dois extremos serão abandonados a seguir. Às vezes, aparenta ser uma comédia física, incluindo pessoas que tropeçam no cais e caem na água; depois se torna um drama profundo a respeito de adolescentes que se amam, e então, um suspense envolvendo um sujeito racista que planeja prender um rapaz negro.
A diretora Rebecca Miller hesita bastante quanto ao foco e o tom de seu projeto. Apesar da aparência de um roteiro escrito a várias mãos, tudo ficou sob controle da criadora. É difícil pensar como ela decidiu incluir, na mesma jornada, a crise criativa de um compositor de ópera, os amores obsessivos da capitã de um barco de resgate, a compulsão psicorrígida de um homem apaixonado por reconstituições históricas, e as fobias de uma psicóloga cristã. No entanto, estes elementos convivem — ou talvez se atropelem e se atrapalhem, dependendo do ponto de vista.
Os personagens são definidos por seus tiques e fobias, ao invés de desejos e traços de personalidade. O homem com intensas crises de ansiedade se casa com a mulher conhecida pelo TOC voltado à compulsão pela limpeza. Eles cruzam com o caminho de uma mulher obsessiva, insegura e delirante, e do homem neurótico. Cuidado, adolescentes norte-americanos: vocês aparentam ponderados agora, mas se tornarão um mosaico de psicopatias daqui a 20 anos.
A ciranda de paranoias constituiria o material ideal para uma comédia extravagante. Entretanto, Miller tem a certeza de possuir um drama profundo em mãos, do tipo que traria mensagens profundas a respeito da crise na contemporaneidade. É possível pensar no que Wes Anderson ou os irmãos Coen poderiam fazer a partir deste material tão improvável — reforçando justamente as coincidências, quiproquós e reviravoltas que ocorrem a cada cinco minutos. Seria fundamental que a obra assumisse seu caráter absurdo.
Seria fundamental que a obra assumisse seu caráter absurdo. Entretanto, o projeto insiste em se levar com leveza, até certa melancolia.
Entretanto, o projeto insiste em se levar com leveza, até certa melancolia, equilibrada numa trilha sonora de pianos, para ditar as pequenas alegrias e modestas tristezas. Os atores compreendem suas funções de maneira diferente: Anne Hathaway abraça o humor de uma comédia pastelão; Peter Dinklage reforça até demais o ataque de ansiedade e o olhar desesperado; já Joanna Kulig soa presa em algum drama de guerra seríssimo. Os jovens Evan Ellison e Harlow Jane desfilam pelo manicômio de suas famílias com o desprendimento de quem não tem nada a ver com isso — e quem poderia julgá-los?
No entanto, este é um aspecto bastante incômodo de She Came to Me: sua indiferença em relação aos temas graves abordados. Para tantas fobias, tiques e crises de nervos, Miller imprime uma estética blasé, repleta de cozinhas de classe-média alta onde os personagens parecem encenar um comercial de margarina. Falta gravidade, perturbação, e algum tipo de fricção estética para representar o caos ao invés de contá-lo via diálogos. A imaginação profunda na criação desta farsa não se estende à criação de imagens, bastante protocolares.
Assim, os protagonistas do filme coral sofrem com o teor inconsequente das ações. Katrina sofre de uma obsessão incontrolável pelos homens que conhece, mas logo reconhece o problema, que desaparece. (Freud discordaria). Julian é envolvido numa acusação de crime que pode acabar com a sua vida, até o roteiro decidir que já explorou o tema o bastante, e simplesmente ignorá-lo. Steven sofre com uma crise interminável para criar suas novas óperas, mas o filme pisca, e na cena seguinte, o espetáculo está pronto. Ele jamais demonstra qualquer conhecimento musical particular. Patricia se sente mal pelo fato que a mãe da namorada do filho seja sua empregada doméstica, mas depois pensa: e por que não? Assim todos dão as mãos e vivem felizes para sempre.
A comédia se importa pouco com sua lógica interna, estando disposta a se sabotar assim que uma nova ideia aparece. A narrativa se desenvolve na estrutura de um brainstorming permanente de Miller consigo mesma: e se Patricia decidisse virar freira? E se Steven fosse encarregado de uma ópera com alienígenas? E se Katrina começasse a se tratar com Patricia, sem saber que esta é a esposa do amante (motor típico da farsa, também abandonado)? E se? E se? E se? O furor da criação de ideias novas não se traduz na dedicação em desenvolvê-las de maneira orgânica.
She Came to Me solicita um espectador entregue ao seu delírio particular, disposto a se calar diante de inúmeras falhas e questionamentos de roteiro (o filho se sentou durante horas com a mãe na ópera, mas não percebeu a marca na testa dela?) em prol do humor rocambolesco. “Mas é apenas uma comédia, não exija muito”, parece nos solicitar o filme, a cada nova cena. “Por favor, fique comigo até o final. Uma hora, tudo isso fará sentido, prometo”, insiste o filme.
Ora, no final, a aventura se conclui de maneira mágica, como convém às fábulas afeitas ao realismo fantástico. Suspendem-se todos os problemas de uma hora para a outra, e todos ficam felizes! Logo, o meio constitui o final (no sentido de finalidade), ou pelo menos, o justifica: as viradas e guinadas representam um objetivo em si próprias. Pouco importa onde a obra chegaria — a diversão se encontraria no gesto de se perder. Neste sentido, a metáfora final de um barco partindo em direção a um caminho desconhecido diz muito sobre o longa-metragem.
“Se você está aqui, quem está dirigindo o barco?”, pergunta uma passageira amedrontada, ao se deparar com a capitã junto aos passageiros. Ninguém está no comando, cara personagem. Navega-se a esmo. Mas essa era a ideia, assumida. Então, tudo bem — aparentemente. Caso a montagem conseguisse equilibrar melhor os núcleos narrativos (a família de classe média-baixa é esquecida por tempo demais) e reforçar o teor das piadas falhas (o machado no barco, a escolha da cidade para se casar), talvez a insanidade funcionasse melhor. Falta a figura de um produtor centralizador, capaz de observar a bagunça se dispersando, e dizer: “Para tudo. Precisamos corrigir isso, eliminar esta trama aqui, desenvolver este personagem melhor”. Mas nada disso acontece. A nau dos loucos desliza alegremente rumo ao naufrágio.