She Came To Me (2023)

A nau dos loucos

título original (ano)
She Came To Me (2023)
país
EUA
gênero
Comédia, Drama, Romance
duração
102 minutos
direção
Rebecca Miller
elenco
Peter Dinklage, Marisa Tomei, Joanna Kulig, Brian d’Arcy James, Anne Hathaway, Harlow Jane, Evan Ellison
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Há muitos elementos se (des)encontrando neste filme aqui. Até a janela (a proporção da imagem) soa indecisa na cena inicial: o quadro se abre num formato próximo do quadrado, volta ao scope mais retangular, e retorna ao quadrado. Os dois extremos serão abandonados a seguir. Às vezes, aparenta ser uma comédia física, incluindo pessoas que tropeçam no cais e caem na água; depois se torna um drama profundo a respeito de adolescentes que se amam, e então, um suspense envolvendo um sujeito racista que planeja prender um rapaz negro.

A diretora Rebecca Miller hesita bastante quanto ao foco e o tom de seu projeto. Apesar da aparência de um roteiro escrito a várias mãos, tudo ficou sob controle da criadora. É difícil pensar como ela decidiu incluir, na mesma jornada, a crise criativa de um compositor de ópera, os amores obsessivos da capitã de um barco de resgate, a compulsão psicorrígida de um homem apaixonado por reconstituições históricas, e as fobias de uma psicóloga cristã. No entanto, estes elementos convivem — ou talvez se atropelem e se atrapalhem, dependendo do ponto de vista.

Os personagens são definidos por seus tiques e fobias, ao invés de desejos e traços de personalidade. O homem com intensas crises de ansiedade se casa com a mulher conhecida pelo TOC voltado à compulsão pela limpeza. Eles cruzam com o caminho de uma mulher obsessiva, insegura e delirante, e do homem neurótico. Cuidado, adolescentes norte-americanos: vocês aparentam ponderados agora, mas se tornarão um mosaico de psicopatias daqui a 20 anos.

A ciranda de paranoias constituiria o material ideal para uma comédia extravagante. Entretanto, Miller tem a certeza de possuir um drama profundo em mãos, do tipo que traria mensagens profundas a respeito da crise na contemporaneidade. É possível pensar no que Wes Anderson ou os irmãos Coen poderiam fazer a partir deste material tão improvável — reforçando justamente as coincidências, quiproquós e reviravoltas que ocorrem a cada cinco minutos. Seria fundamental que a obra assumisse seu caráter absurdo.

Seria fundamental que a obra assumisse seu caráter absurdo. Entretanto, o projeto insiste em se levar com leveza, até certa melancolia.

Entretanto, o projeto insiste em se levar com leveza, até certa melancolia, equilibrada numa trilha sonora de pianos, para ditar as pequenas alegrias e modestas tristezas. Os atores compreendem suas funções de maneira diferente: Anne Hathaway abraça o humor de uma comédia pastelão; Peter Dinklage reforça até demais o ataque de ansiedade e o olhar desesperado; já Joanna Kulig soa presa em algum drama de guerra seríssimo. Os jovens Evan Ellison e Harlow Jane desfilam pelo manicômio de suas famílias com o desprendimento de quem não tem nada a ver com isso — e quem poderia julgá-los?

No entanto, este é um aspecto bastante incômodo de She Came to Me: sua indiferença em relação aos temas graves abordados. Para tantas fobias, tiques e crises de nervos, Miller imprime uma estética blasé, repleta de cozinhas de classe-média alta onde os personagens parecem encenar um comercial de margarina. Falta gravidade, perturbação, e algum tipo de fricção estética para representar o caos ao invés de contá-lo via diálogos. A imaginação profunda na criação desta farsa não se estende à criação de imagens, bastante protocolares.

Assim, os protagonistas do filme coral sofrem com o teor inconsequente das ações. Katrina sofre de uma obsessão incontrolável pelos homens que conhece, mas logo reconhece o problema, que desaparece. (Freud discordaria). Julian é envolvido numa acusação de crime que pode acabar com a sua vida, até o roteiro decidir que já explorou o tema o bastante, e simplesmente ignorá-lo. Steven sofre com uma crise interminável para criar suas novas óperas, mas o filme pisca, e na cena seguinte, o espetáculo está pronto. Ele jamais demonstra qualquer conhecimento musical particular. Patricia se sente mal pelo fato que a mãe da namorada do filho seja sua empregada doméstica, mas depois pensa: e por que não? Assim todos dão as mãos e vivem felizes para sempre.

A comédia se importa pouco com sua lógica interna, estando disposta a se sabotar assim que uma nova ideia aparece. A narrativa se desenvolve na estrutura de um brainstorming permanente de Miller consigo mesma: e se Patricia decidisse virar freira? E se Steven fosse encarregado de uma ópera com alienígenas? E se Katrina começasse a se tratar com Patricia, sem saber que esta é a esposa do amante (motor típico da farsa, também abandonado)? E se? E se? E se? O furor da criação de ideias novas não se traduz na dedicação em desenvolvê-las de maneira orgânica.

She Came to Me solicita um espectador entregue ao seu delírio particular, disposto a se calar diante de inúmeras falhas e questionamentos de roteiro (o filho se sentou durante horas com a mãe na ópera, mas não percebeu a marca na testa dela?) em prol do humor rocambolesco. “Mas é apenas uma comédia, não exija muito”, parece nos solicitar o filme, a cada nova cena. “Por favor, fique comigo até o final. Uma hora, tudo isso fará sentido, prometo”, insiste o filme. 

Ora, no final, a aventura se conclui de maneira mágica, como convém às fábulas afeitas ao realismo fantástico. Suspendem-se todos os problemas de uma hora para a outra, e todos ficam felizes! Logo, o meio constitui o final (no sentido de finalidade), ou pelo menos, o justifica: as viradas e guinadas representam um objetivo em si próprias. Pouco importa onde a obra chegaria — a diversão se encontraria no gesto de se perder. Neste sentido, a metáfora final de um barco partindo em direção a um caminho desconhecido diz muito sobre o longa-metragem. 

“Se você está aqui, quem está dirigindo o barco?”, pergunta uma passageira amedrontada, ao se deparar com a capitã junto aos passageiros. Ninguém está no comando, cara personagem. Navega-se a esmo. Mas essa era a ideia, assumida. Então, tudo bem — aparentemente. Caso a montagem conseguisse equilibrar melhor os núcleos narrativos (a família de classe média-baixa é esquecida por tempo demais) e reforçar o teor das piadas falhas (o machado no barco, a escolha da cidade para se casar), talvez a insanidade funcionasse melhor. Falta a figura de um produtor centralizador, capaz de observar a bagunça se dispersando, e dizer: “Para tudo. Precisamos corrigir isso, eliminar esta trama aqui, desenvolver este personagem melhor”. Mas nada disso acontece. A nau dos loucos desliza alegremente rumo ao naufrágio.

She Came To Me (2023)
4
Nota 4/10

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