Clube Zero (2023)

Nasce uma seita

título original (ano)
Club Zero (2023)
gênero
Drama, Comédia
país
Áustria, Reino Unido, Alemanha, França, Dinamarca, Turquia, EUA, Catar, Bósnia e Herzegovina
duração
110 minutos
direção
Jessica Hausner
elenco
Mia Wasikowska, Sidse Babett Knudsen, Amir El-Masry, Camilla Rutherford, Amanda Lawrence, Sam Hoare, Elsa Zylberstein, Keeley Forsyth, Mathieu Demy, Emily Stride, Szandra Asztalos, Florence Baker, Samuel D Anderson
visto em
Cinemas

O estabelecimento de ensino onde se situa a maior parte da trama de Clube Zero representa o ideal de “escola sem partido” da extrema-direita brasileira. Somem os professores tradicionais, “doutrinadores”, assim como disciplinas de ciências, história e geografia. Entram em cena o mandarim, pensado para os negócios; a educação física, para manterem a boa aparência, e a matéria de “Comida Consciente”. 

Ninguém tinha ouvido falar anteriormente na Senhorita Novak (Mia Wasikowska), no entanto, um dos pais encontra seus serviços num site, sugere ao conselho da escola, e a mulher está contratada. Afinal, comer conscientemente seria algo bom, correto? Utilizar menos alimentos, diminuir a produção, poupar a natureza. A mulher possui sua própria marca de chás, cuja embalagem apresenta seu sorriso estampado. Parece positivo. Começam então as aulas. 

A comédia discute os limites do fanatismo e a capacidade de persuasão dos líderes carismáticos. O discurso da protagonista decorre diretamente das falas sedutoras dos pastores pentecostais, dos coaches de saúde e boa forma, assim como os gurus espirituais. A nenhum deles se solicita provas científicas e anos de estudo comprovado em alguma instituição reputada. Eles se sobressaem graças à capacidade de persuasão. 

Novak leva os alunos a comerem menos carne, e depois, a comerem menos alimentos em geral. Insinua, aos poucos, que seria possível viver sem alimento nenhum. “Mas precisamos de alguma coisa para viver, não?”, contestam os raros alunos presentes. A mulher sugere que não. Esta seria uma mentira da indústria alimentícia para faturar mais. Por que devo acreditar na ciência, se meu coração me diz que é possível?

O andamento se torna obsessivo, monotemático, repetitivo. Uma vez apresentado o discurso, nos dez primeiros minutos, Clube Zero tem pouco a oferecer em termos de desenvolvimento até a conclusão.

Os temas do longa-metragem são evidentes. A diretora austríaca Jessica Hausner sempre se interessou pelos limites entre fé e razão. No excelente Lourdes (2009), questionava a possibilidade dos milagres. No igualmente forte Little Joe (2019), investigava a possibilidade de a ciência desenvolver uma “planta da alegria”. A investigação pessoal continua através desta comédia sarcástica, destinada aos tempos hipócritas e antiintelectuais em que vivemos.

Os alvos do humor se tornam igualmente claros. Filma-se o casarão riquíssimo de uma família que diminui uma pequena parcela de carne em sua alimentação, acreditando estar “salvando o planeta”, enquanto gasta em diversos produtos de consumo para decorar a mansão. O foco se volta à nossa ingenuidade diante dos novos “influenciadores”, e à tendência em acreditar apenas naquilo que corresponde às nossas crenças. Clube Zero pode ser lido como a fábula desta positividade tóxica e hipócrita dos novos-ricos.

Apesar das intenções nobres, o resultado encontra inúmeras limitações, em decorrência da simplicidade atroz desta metáfora. Absolutamente todas as cenas da comédia giram em torno de comer ou não comer; comer mais ou comer menos. A fome, a saciedade, a força adquirida a partir dos alimentos se tornam uma discussão secundária. O roteiro nunca investiga a sexualidade dos adolescentes, seus planos para depois da escola, ou ainda a relação com os pais endinheirados, porém ausentes. 

Pelo menos, a narrativa sugere que seitas florescem em locais carentes de atenção. Como os garotos e garotas recebem pouco carinho dos pais, tornam-se mais suscetíveis às falas pausadas e gentis de Novak, prometendo cuidar do corpo e da mente deles como ninguém mais o faz. A mulher se converte em mãe simbólica, além de amiga, professora, confidente. Todos os extremismos crescem no vácuo de opções fornecidas pelas políticas tradicionais. Como os cidadãos não se veem contemplados pelo Estado, recorrem com facilidade às práticas destinadas a combater “tudo o que está aí”.  

No entanto, nenhum personagem adquire subjetividade e psicologia complexas. Ficam restritos às suas funções narrativas exemplares: são alunos ou professores, dominadores ou submissos. A tendência à artificialidade explícita (na cor dos uniformes, nos planos em contraplongée, na trilha sonora hipnótica) apenas reforçam o aspecto fabular bastante compreensível pela trama. O aspecto de realismo fantástico é sublinhado com tamanha insistência que a autora parece duvidar da capacidade de seu espectador em compreender subentendidos ou ambiguidades.

O andamento se torna obsessivo, monotemático, repetitivo. Uma vez apresentado o discurso, nos dez primeiros minutos, Clube Zero tem pouco a oferecer em termos de desenvolvimento até a conclusão. Após 110 minutos de lavagem cerebral nos alunos, filmados com a frieza e elegância de uma esteira de produção industrial, a direção chega exatamente ao mesmo ponto de onde partiu. Acrescenta pouco, para não dizer nada, à discussão paródica.

Pior ainda, corre o risco de nunca denunciar a contento o núcleo fascista, que domina a integralidade das cenas. Quando os jovens se privam de alimento, eles de fato se sentem mais fortes, dispostos, felizes. Certo, este poderia ser o efeito placebo inicial. No entanto, os atletas continuam apresentando ótimo rendimento, e os alunos inteligentes conseguem notas ainda melhores mediante jejum. O cansaço, a fraqueza, os riscos mais graves ficam de fora do escopo do roteiro. Apenas o aluno diabético sofre problemas, devido à sua condição específica. Aos demais, a privação de alimento se mostra, de fato, benéfica.

No papel principal, Mia Wasikowska tampouco soa como uma escolha apropriada ao papel. Hausner busca uma líder manipuladora e sedutora, no entanto, a atriz jamais demonstra autoridade na voz, nem convicção no olhar. Prefere uma versão calma até demais, de voz baixa e monocórdica, próxima do ideal deturpado do buda ou monge. É difícil pensar que os alunos a seguissem de maneira incondicional, em tão pouco tempo, visto que Novak transparece mais fragilidades do que certezas. Cada vez que a excelente Sidse Babett Knudsen entra em cena, Wasikowska é devorada pela colega.

Clube Zero se inicia com um “alerta de gatilho” em relação a distúrbios alimentares. Esta mensagem serve como confissão de uma responsabilidade que não pertenceria ao cinema. Posto que o filme claramente critica as manipulações alimentares promovidas por Novak, por que abraçar de antemão o impacto que o filme possa surtir em determinados espectadores? Filmes munidos de tal recurso dão razão à direita raivosa, que culpa o cinema pelo mau uso efetuado dele. Sugere que os criadores, de fato, teriam alguma responsabilidade caso o espectador jejuasse após assistir ao filme. Trata-se de um precedente perigoso.

As estratégias de marketing no Brasil se mostram igualmente questionáveis. Nas redes sociais, promete-se um filme chocante, repugnante, concentrando-se na única cena asquerosa da narrativa bastante elegante. Vende-se o espetáculo do nojo, o apelo às sensações, justamente num projeto que privilegia a frieza. Em se tratando de uma obra contrária ao fanatismo e à sedução barata das redes sociais, este uso sensacionalista de uma cena deslocada se prova absolutamente contrário àquilo que o longa-metragem defende.

Por fim, o resultado se enfraquece devido à dificuldade de inserir a tal seita na sociedade ao redor. Ele teria um alcance muito maior caso estudasse o impacto mais amplo desta manipulação, e as possibilidades de fugir dela (os alunos que abandonam as aulas se Novak são simplesmente esquecidos pela trama). O longa-metragem nunca sabe qual ponto de vista adotar — aquele dos pais, dos alunos, da professora? Desconhecemos a crença real de Novak neste processo de privação de alimentos, sua vida social, ou os sentimentos destes jovens quando estão distantes do ambiente escolar. O filme mergulha tanto na insistente simbologia que não consegue dar um passo atrás para analisá-la com o devido distanciamento crítico. Hausner atinge a chacota e a caricatura, mas oferece pouquíssimo à reflexão.

Clube Zero (2023)
3
Nota 3/10

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