Daaaaaalí! (2023)

Meias-ideias

título original (ano)
Daaaaaalí (2023)
país
França
gênero
Comédia
duração
77 minutos
direção
Quentin Dupieux
elenco
Anaïs Demoustier, Gilles Lellouche, Edouard Baer, Jonathan Cohen, Pio Marmai, Didier Flamand, Boris Gillot
visto em
Cinemas

A premissa deste filme é bastante justificável: representar o pintor Salvador Dalí através de seis atores diferentes (por isso as seis letras “a” do título), revezando-se de modo aleatório em cena. A multiplicação representaria a impossibilidade de reduzir o pintor a uma figura única, além de fugir à armadilha de propor uma caracterização fiel. Em paralelo, estabeleceria um diálogo direto com a compreensão do surrealismo, segundo o qual a realidade precisa ser ultrapassada, ao invés de reproduzida. Em outras palavras, conceitualmente, trata-se do ponto de partida ideal para um filme metalinguístico e despojado, contrariando a seriedade solene das autobiografias convencionais.

O cineasta Quentin Dupieux também aparenta se encaixar à perfeição nesta demanda, devido ao histórico de projetos voluntariamente anárquicos, avessos às conexões com o naturalismo. O autor já criou histórias a respeito de pneus assassinos (Rubber, 2010), a busca pelo melhor gemido da história do cinema (Réalité, 2014), a obsessão de um homem por sua jaqueta (Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo, 2019) e um porão permitindo atravessar o espaço-tempo (Incroyable Mais Vrai, 2022), para citar apenas alguns. Logo, concessões à lógica e ao real constituem uma prática corriqueira para o criador.

Para o cineasta, o pintor foi uma diva incontrolável. Isso é divertido, é leve, mas também é insuficiente, mesmo dentro da leve provocação a que o longa-metragem se propõe.

No entanto, este projeto chega num instante particular de sua carreira, quando elabora projetos cada vez mais acelerados, de curta duração e orçamento limitado, multiplicando o volume de lançamentos — Dupieux chegou a fazer dois filmes por ano em 2022 e 2023, no qual se inclui Daaaaaalí!. Aclamado pelos grandes festivais de cinema do mundo, e encarado com mais curiosidade do que admiração (provocando perguntas do tipo “O que o diretor vai aprontar desta vez?”), ele tem desenvolvido obras nas quais a ideia soa crua, pouco amadurecida. Dupieux demonstra maior interesse em conceber premissas inesperadas do que em desenvolvê-las de fato. As histórias se baseiam na exposição deste ponto de partida singular, tido como motivação e finalidade — como já se percebia em Fumar Causa Tosse e Yannick.

A não-biografia do espanhol desperta uma impressão semelhante. Além da multiplicação de atores (Gilles Lellouche, Edouard Baer, Jonathan Cohen, Pio Marmai, Didier Flamand e Boris Gillot), o cineasta decide representar o protagonista por um mero traço de personalidade: o egocentrismo. Nesta comédia, Dalí deseja ser filmado com as maiores câmeras possíveis, por uma equipe numerosa. Ele insiste em apalpar os seios das maquiadoras, exige dirigir um conversível na praia, e trata todos ao redor com profundo desdém. Mesmo assim, estas figuras-satélites ainda o consideram fascinante, consentindo com cada capricho do gênio. Este seria o preço a pagar, aparentemente, pela riqueza inestimável de suas criações. 

Logo, com os olhos arregalados, o bigode característico e um sotaque espanhol fortíssimo, o homem move-se entre ordens, exigências e ataques de fúria. Compreende-se que Dupieux parta para a caricatura assumida — ninguém exigiria de tal projeto uma sutileza das ações e formas. No entanto, mesmo para os padrões do realismo fantástico, ou para a comédia do absurdo, a proposta soa magra: Dalí não teria nenhum outro interesse, ao longo de 77 minutos de narrativa, além de ser mimado? Nenhum tema a enfrentar, um quadro que pensaria em pintar, um conflito pessoal a resolver? A iniciativa resulta naquilo que os norte-americanos chamariam de one-trick pony, ou nosso samba de uma nota só: ela depende de uma única ideia, explorada à exaustão até se atingir a mínima duração do longa-metragem.

Sem dúvida, os atores se divertem na rara proposta da hipérbole assumida. Percebe-se o prazer em mandar às favas a psicologia dos personagens, a composição tradicional de uma pessoa conhecida, podendo explorar sem meios-termos o teor cartunesco. Anaïs Demoustier, atriz habituada aos universos excêntricos do diretor, também brinca com a inocência da aspirante a jornalista, incapaz de domar a personalidade gigantesca do pintor à sua frente. Ela recebe ordens para se vestir melhor, se maquiar, e colocar roupas mais provocadoras para reter a atenção do espanhol. (Pode-se questionar, inclusive, a tendência de Dupieux em extrair humor basicamente de uma sequência de violências de gênero, verbais ou físicas, sem qualquer forma de questionamento).

Mesmo esteticamente, as provocações são modestas. É pitoresco, sem dúvida, transformar a caminhada de Dalí pelo corredor de um hotel como uma andança interminável, ou imaginar que as figuras humanas distorcidas de seus quadros tenham sido modelos igualmente distorcidos, posando para o pintor. A ideia do sonho-dentro-do-sonho também dialoga de maneira direta com o aspecto onírico das criações de Dalí. Em contrapartida, trata-se de momentos isolados, na forma de esquetes cômicas unidas sem real coesão estética. Nada na forma de enquadrar, iluminar, compor ou montar transmite um desejo de ruptura com o real, para além das esperadas citações a quadros do artista. Ora, o surrealismo sustentava um embasamento filosófico e político muito mais complexo do que a simples esquisitice-pela-esquisitice, a aleatoriedade pelo mero direito de se fazer o que quiser. Dupieux confunde a vanguarda artística com uma rebeldia infantil.

Assim, Daaaaaalí! encerra-se exatamente onde começou, tanto em termos narrativos quanto estéticos. Passados dez minutos da aventura, teremos descoberto todas as ideias de linguagem e de humor propostas por Dupieux. Nem mesmo o amplo leque de Dalís confere alterações substanciais na percepção do personagem, posto que os atores o interpretam de maneiras semelhantes. Tampouco se explora a tensão evidente de um olhar francês à Espanha, ou um olhar do século XXI ao mundo de 70 anos atrás, e mesmo de uma narrativa digital e efêmera ilustrando uma arte que se pretendia permanente. Para o cineasta, o pintor foi uma diva incontrolável. Isso é divertido, é leve, mas também é insuficiente, mesmo dentro da leve provocação a que o longa-metragem se propõe.

Daaaaaalí! (2023)
4
Nota 4/10

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