Divertimento (2022)

A doce meritocracia

título original (ano)
Divertimento (2022)
país
França
gênero
Drama
duração
110 minutos
direção
Marie-Castille Mention-Schaar
elenco
Oulaya Amamra, Lina El Arabi, Niels Arestrup, Zinedine Soualem, Nadia Kaci, Laurent Cirade, Louis-Damien Kapfer
visto em
Cinemas

“Baseado na incrível história da maestrina que superou todas as dificuldades para tornar-se uma das mais respeitadas da música clássica”. A descrição do cartaz brasileiro é clara e sucinta. Trata-se da narrativa de um-contra-todos, ou seja, uma mulher árabe e periférica lutando contra uma série de homens brancos, cristãos e conservadores que sabotam o seu caminho. Mas não se aflija, espectador: o cartaz antecipa que a personagem terá sucesso nesta empreitada. O final feliz está garantido.

Divertimento possui os mesmos valores e limitações da maioria das “histórias de superação”. Ele parte de um caso absolutamente excepcional para então vendê-lo como exemplar, algo que todos poderiam reproduzir, caso se esforçassem de verdade. O filme demonstra que, a favor da jovem, pesam o talento, a boa vontade e uma resistência inabalável às provações. Ela é humilhada, rejeitada, injustiçada, apenas para voltar e tentar de novo. Quem não ama um azarão, certo?

Face à heroína, constrói-se um grupo de homens perversos, destinados a proteger seu território. Esqueça o machismo corriqueiro, insidioso, do tipo que se disfarça de ajuda ou alega problemas orçamentários para não incorporar trabalhadoras. Aqui, os sujeitos misóginos se assumem como tais, em diálogos de uma clareza infantil: “Você é mulher. Não quero sujar a imagem do meu conservatório”. “Mas você é mulher, e as mulheres não são tão persistentes”. Quando a irmã violoncelista, Fettouma Ziouali (Lina El Arabi) executa à perfeição uma peça, seu próprio professor pede que ela não seja aprovada, para continuar se esforçando e aprimorar sua música.

Divertimento possui os mesmos valores e limitações da maioria das “histórias de superação”. Ele parte de um caso absolutamente excepcional para então vendê-lo como exemplar, algo que todos poderiam reproduzir, caso se esforçassem de verdade.

Tamanho maniqueísmo facilita a tarefa de gostar da nossa mártir sonhadora. A musicista poderia protestar contra o sistema, ir às redes sociais, processar aqueles que a perseguem, unir-se contra outras mulheres marginalizadas nesta profissão. Pelo contrário, ela apenas volta para casa e se esforça ainda mais, crente de que, se for excepcional, o mundo fechará os olhos à sua condição feminina. Zahia jamais protesta contra o machismo, estimando que a tarefa de superar preconceitos caiba à própria vítima. 

O sistema continua idêntico ao final: a conquista da jovem suburbana parece valer ainda mais, aos olhos da direção, devido à sua raridade. Caso diversas mulheres se convertessem em maestrinas anualmente, a história verídica da musicista dificilmente interessaria à diretora e co-roteirista Marie-Castille Mention-Schaar. Cabe então o questionamento: o verdadeiro interesse dos autores de “histórias inspiradoras” residiria no espetáculo da dificuldade, na performance da resistência face às humilhações? É preciso elaborar uma peça didática para que a jovem saia do local visto como avesso à música clássica, e chegue ao cargo de “uma das maestrinas mais respeitadas”, conforme sugere o cartaz, de maneira hiperbólica.  

A principal qualidade do drama provém de sua atriz principal. Enquanto os homens se deleitam em elitismo e perversão, Oulaya Amamra sustenta uma expressão neutra, ciente de que o conteúdo possui um posicionamento moral evidente. Se ela fizesse cara de sofrimento, ou reforçasse os olhos sonhadores, tornaria o resultado risível. Felizmente, a jovem atriz sustenta uma firmeza bastante orgânica, pois ainda revelando, entre as fissuras, alguma fragilidade aqui e acolá.

O conflito entre essência e aparência está visível neste rosto, mesmo quando não existem diálogos à disposição. A cineasta tampouco lhe pede que chore, ou que a trilha sonora venha sublinhar os sentimentos. Divertimento pode ser simplista em suas relações sociais, porém evita o melodrama barato. De mesmo modo, dispensa subtramas comuns nos longas-metragens do gênero: não há histórias de amor para a heroína, brigas de ciúme com a irmã musicista, desentendimentos definitivos com professores. O longa-metragem se move unicamente pelo desejo de se tornar maestrina. 

A “beleza” da direção de fotografia também merece questionamentos. Por um lado, a diretora de fotografia Naomi Amarger evita transformar a escola dos alunos ricos num paraíso, ou converter a periferia de Stains em um local sombrio e perigoso. Por outro lado, assim que os sonhos se concretizam, transforma as apresentações de Zahia em um idílio quase paradisíaco, onde até os elementos da natureza jogam a seu favor. Embora a estética seja adocicada, ela não se mostra completamente desprovida de senso crítico em relação aos universos opostos que aborda.

Resta uma história moralista, que nunca desperta debates em virtude da ausência de fricções, de subentendidos, de metáforas e alusões. Todos os significados precisam ser verbalizados e esmiuçados, com a ajuda de frases do tipo “Você pode ser o que quiser”. É curioso que esta forma de cinema estime abraçar o público ao duvidar de sua capacidade em compreender uma discussão mais complexa. Ora, nossa protagonista conquista um feito improvável, enquanto as dezenas de amigos músicos jamais alcançam tais oportunidades. Mas não falaremos deles, é claro. Eles seriam comuns, e não merecem um filme

O que faltaria aos outros jovens de Stains? Persistência e esforço? O caráter tão ilibado quanto aquele de Zahia e Fettouma, que dão aulas a crianças com dificuldade de aprendizado, em nome da importância social da arte? O longa-metragem acredita nesta capacidade civilizatória da música, especialmente a música clássica, sem letras, e percebida como “universal”. As composições tornariam as pessoas melhores, apagariam as diferenças, aproximariam grupos antagônicos.

Além disso, sustenta o mito da meritocracia que tanto interessa às elites. Um caso como o de Zahia serve a jogar na cara de tantas crianças e jovens periféricos que não se tornam os maiores de suas áreas. “Está vendo? Ela tentou muito e conseguiu. Por que você não faz a mesma coisa?”. Assim, o governo não se torna responsável, a prefeitura não se torna responsável, os editais, as leis, as políticas públicas não se tornam responsáveis. Depende apenas de você. Basta querer muito e continuar tentando. Boa sorte. 

Divertimento (2022)
5
Nota 5/10

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