Solange (2023)

Samba de uma mulher só

título original (ano)
Solange (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
60 minutos
direção
Nathália Tereza, Tomás Osten
elenco
Cássia Damasceno, Nina Ribas, Stefano Lopes, Amali Mussi, Tereza Mussi, Karina Flor, Ana Paula Málaga, Renato Novais, Vanessa Vieira, Abayomi Oluwakemi, Gil Baroni, Alexandre Canetta
visto em
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Para uma produção pequena, um filme pequeno. É impressionante a maneira como os diretores Nathália Tereza e Tomás Osten se adequam aos recursos limitados ao efetuarem um longa-metragem de 60 minutos, com uma única protagonista em cena (nenhum coadjuvante é delineado em profundidade), movida por um conflito único, fechada num formato de tela próximo do quadrado. Assim, diminui o trabalho das equipes de direção de arte e fotografia, que têm menos espaço a iluminar, focar, decorar.

Isso não significa que a obra seja insuficiente, ou reduzida em suas potencialidades — muito pelo contrário. Enquanto outros títulos de baixo orçamento da Mostra Tiradentes tentam elaborar tramas para as quais não possuem todos os recursos desejados (caso de Cervejas no Escuro, Xamã Punk), Solange é pensado, em termos de produção, roteiro e conceito, para este escopo preciso. Nenhuma sequência incomoda por deficiências estéticas ou e linguagem — em outras palavras, o projeto não “pede desculpas” por ser realizado desta maneira, “como deu”, “porque não dava para fazer de outra maneira”.

As equipes criativas, formada basicamente pela dupla de cineastas, junto à atriz e roteirista Cássia Damasceno, comprovam que a noção de “cinema mutirão” pode implicar em obras bem filmadas, editadas e finalizadas, com aspecto profissional, polido, e preocupado com a espectatorialidade. Esta seria uma equipe de pessoas que, digamos, sonham com os pés no chão. Por isso, o espectador é surpreso desde as primeiras cenas com a elegante granulação da imagem, apesar da captação digital; o cuidado com a profundidade de campo e as sugestões sonoras fora de quadro; o foco na protagonista durante conversas, para evitar o simples plano e contraplano. 

A presença ostensiva de close-ups poderia implicar numa limitação de linguagem e ponto de vista. Afinal, o rosto de Damasceno domina a integralidade das cenas e das imagens, deixando pouco espaço à percepção do mundo ao redor. No entanto, os criadores efetuam uso criativo e inteligente do recurso, sugerindo a dificuldade desta mulher, que retorna à cidade natal, em lidar com os conflitos persistentes com amigos e vizinhos. A câmera não enxerga espaços abertos porque a própria Solange se prova incapaz de ampliar o escopo de sua visão.

Estas interações são tão engraçadas quanto tristes, ou talvez comoventes porque inconsequentes, apesar da obstinação da heroína. Em última instância, ela ri de sua própria situação.

Além disso, a predileção pelo close-up não significa um impedimento de experimentar, propor metáforas ou analogias. As caixas que a mulher busca em diversas casas, contendo pertences deixados sob os cuidados temporários de cada um, representam estes afetos colocados em pausa, nem resolvidos, nem retomados. Em alguns instantes, aludem ao luto jamais superado pela morte de um colega. Ao retornar, a protagonista começa a perceber que talvez tenha fugido de temas aos quais precisa se confrontar agora.

Enquanto isso, os diretores investem em pequenos instantes cômicos, absurdos, teatrais. Na busca insistente pelas caixas de papelão, Tereza e Osten atingem o ápice de uma extensa sequência de corrida à direita e à esquerda, em planos muitos próximos do rosto da atriz. Percebemos que ela carrega uma caixa, porém corre sem rumo, quebrando o eixo, provocando um sentimento de exaustão e falta de propósito. Esteticamente, os cineastas aludem à autoconsciência gradativa de Solange quanto à inutilidade da busca pelos objetos.

Em outros instantes, apostam em planos longuíssimos, ainda fechados no rosto, porém repletos de movimentos — caso em que a direção de fotografia dança, junto a Cássia Damasceno, para acompanhar os gestos amplos sem perdê-la de vista. A bebedeira com a amiga Jaque na banheira resulta em ótimos instantes onde humor e drama se combinam de maneira orgânica (os diálogos, aliás, se mostram perfeitamente verossímeis ao registro oral entre duas amigas de longa data). Estas interações são tão engraçadas quanto tristes, ou talvez comoventes porque inconsequentes, apesar da obstinação da heroína. Em última instância, ela ri de sua própria situação.

Esta configuração se acentua pela maneira como os diretores enxergam personagens insanas ao redor de uma mulher plenamente razoável — mas nunca o contrário. A síndica intrometida demais; a amiga dissimulada que se recusa a devolver os livros e um casaco; a melhor amiga que sempre falta aos compromissos marcados: estas, sim, serão motivo de chacota ou julgamento moral pelo distanciamento da comédia. Já as dores de Solange, o carinho pelo namorado e o sofrimento do rapaz em luto pelo namorado falecido são poupados de qualquer piada. Os criadores sabem muito bem de quem, do quê e quando podem rir.

O filme não funcionaria tão bem sem a presença iluminada de Damasceno neste papel. Ela domina as ambiguidades, falhas e contradições da personagem-título. Apesar dos sorrisos protocolares, transparece o desconcerto ao conversar com cada um deles, e o desconforto de uma mulher prestes a explodir — ou seria implodir? Nem ela, nem o roteiro, verbalizam nas conversas mais do que o espectador poderia deduzir por conta própria. O trio encarrega a atriz de transmitir, sozinha, uma infinidade de emoções e informações que ela veicula sem dificuldades.

Ao final, é possível que o resultado seja pouco marcante num oceano de obras profundamente radicais, do tipo que busca a genialidade ou o desastre completo, sem meios-termos. Solange se traduz numa obra singela, porém na ausência de experimentações de linguagem e temas-choque para a sensibilidade contemporânea, oferece um humanismo cuidadoso, e uma comunicação adulta com o espectador, confiando em sua capacidade de compreensão por conta própria. Tudo isso, embalado numa produção impecável, como poucos filmes deste porte apresentam. O cinema brasileiro precisa de mais obras dotadas de tais qualidades.

Solange (2023)
7
Nota 7/10

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