Encontro com o Ditador (2024)

O teatro da normalidade

título original (ano)
Rendez-vous avec Pol Pot (2024)
país
França, Camboja, Taiwan, Catar, Turquia
gênero
Drama, História
duração
112 minutos
direção
Rithy Panh
elenco
Irène Jacob, Grégoire Colin, Cyril Guei, Bunhok Lim, Somaline Mao
visto em
Cinemas

Raros ditadores aceitam a descrição de seus regimes enquanto ditaduras. Se alguma coisa une tiranos de esquerda e direita, é a aparência de legalidade que pretendem atribuir aos regimes contrários aos direitos humanos. (“Respeitem a democracia”, escreve, em um dos maiores jornais do Brasil, o ex-presidente envolvido em golpes de Estado). Gabinete do ódio, invasão coordenada da sede dos poderes, descredibilização do sistema eleitoral, planos para assassinar opositores, aquisição ilegal de joias, obstrução de justiça — tudo perfeitamente normal. Não há nada a ver por aqui; circulando.

É muito interessante, para os brasileiros, assistir a Encontro com o Ditador, nova ficção do cineasta Rithy Panh. Os contextos são bem diferentes, é claro: entre 1975 e 1979, a população cambojana viveu um dos regimes mais devastadores do último século, sob liderança de Pol Pot. O governante escravizou seus conterrâneos, ocultou cadáveres, atacou incessantemente os cidadãos contrários à revolução. Deixou mais da metade do país na miséria absoluta, exterminando 1,7 milhão de pessoas. 

Felizmente, o Brasil esteve longe deste quadro. No entanto, a identificação ocorre na esfera do teatro da normalidade. Acusações, investigações, provas e julgamentos revestem-se do aspecto de perseguição dos opositores, mentiras, falácias, fake news, exageros. “Meu oponente roubou muito mais”. Esta ficção apresenta, à enésima potência, o cinismo e a frieza de um regime avesso à democracia, no que diz respeito à autoimagem oferecida à mídia nacional e estrangeira. Aquilo que se convencionou chamar de “disputa de narrativas” está em plena atividade durante a narrativa baseada em fatos.

Panh escapa ao perigo da idealização da imprensa enquanto veículo de uma verdade absoluta. O cineasta utiliza inúmeros recursos para sugerir o horror sem precisar filmá-lo enquanto tal.

A premissa apresenta três representantes da mídia francesa, que recebem acesso excepcional ao Khmer Vermelho durante o ápice da ação de Pol Pot. Seduzidos pela importância da pauta, eles se dirigem ao país. No entanto, encontram uma farsa hipócrita: o trio composto por Lise (Irène Jacob), Paul (Cyril Gueï) e Alain (Grégoire Colin) permanece fechado em seus quartos, saindo apenas para visitas oficiais a pequenos grupos de trabalhadores que, em silêncio, reproduzem o trabalho no campo e no artesanato, posando para as fotos da imprensa internacional. “Isso aqui vocês podem filmar”, insiste o guia do trio. 

Entretanto, os protagonistas não tardam a perceber a encenação grosseiramente orquestrada. Procuram alternativas para fugir à vigilância armada e mergulhar nos arredores, onde a pobreza e a exploração dão as caras. Discordam entre si: Paul se recusa a seguir nos passeios “turísticos”, em suas palavras; Lise deseja ver até onde o embuste se sustenta; e Alain, partidário de Pol Pot, recusa-se a acreditar nas violações sugeridas pelas bordas da imagem. 

Deste modo, Panh escapa ao perigo da idealização da imprensa enquanto veículo de uma verdade absoluta (algo que Hollywood faz com frequência, em projetos como Spotlight e Ela Disse). Sugere certa ingenuidade, condescendência ou inabilidade de confrontar o poder ao longo da permanência em terra estrangeira. O diretor inclusive lança, discretamente, críticas ao colonialismo francês pela pobreza em que se encontram diversos países do sul e sudeste asiáticos. Logo, os três visitantes escapam à caracterização de heróis — vide o desfecho nada otimista quanto ao papel revelador da imprensa.

Encontro com o Ditador opera uma inusitada mistura de tons. Enquanto a trilha sonora aposta num suspense intenso, declarando desde a cena inicial no perigo desta viagem, a montagem prefere orquestrar um drama convencional. Os planos são longos, contemplativos, cuidadosamente ambíguos. Lise é recebida com apertos de mão e brindes no seu quarto (incluindo um machado), embora a porta de seu quarto permaneça trancada pelos agentes do regime. Eles lidam com o guia e os demais agentes com pretensa amabilidade, ainda que a tensão aumente quando alguma pergunta mais espinhosa chega aos ouvidos das forças locais. 

Teria sido muito mais fácil ao diretor revestir este encontro com um maniqueísmo exemplar. No entanto, Panh prefere o verniz da diplomacia, muito mais pernicioso e delicado, por trás da chegada dos visitantes. O perigo insinuado em cada sequência garante os melhores momentos deste longa-metragem. Ao invés de gritar “Extermínio!” em cada imagem, o autor sabe sugerir atrocidades fora de quadro, por meio de sons, silêncios e vazios. Em consequência, o espectador pode projetar seu imaginário de horror a partir das pistas fornecidas, completando as lacunas.

Trata-se de uma abordagem eticamente responsável, no sentido de evitar o sensacionalismo. Muitos filmes preferem o choque moralizador e pedagógico, apresentando de maneira clara as atrocidades existentes (caso de 20 Dias em Mariupol). Ora, o cineasta utiliza inúmeros recursos para sugerir o horror sem precisar filmá-lo enquanto tal. Ele utiliza os tradicionais bonecos de argila, que tem aplicado em seus últimos longas-metragens, além de flashes coloridos beirando a abstração, e da projeção de imagens de arquivo nas janelas de um carro em movimento.

É certo que nem todos os recursos funcionam de maneira expressiva. O próprio emprego dos bonecos possui critérios variáveis — ora serve para substituir cenas violentas, ora aparece em momentos de deslocamento comum dos protagonistas pelo território. O diretor também evita fornecer um rosto a Pol Pot, preferindo encobrir seu corpo pelas sombras. Através deste gesto, talvez busque torná-lo um tirano universal, no qual possamos projetar outros líderes mais próximos de nossa cultura. No entanto, também contribui a elevar o aspecto mítico do ex-líder cambojano, ao invés de reduzi-lo à sua perversa humanidade.

“Somos terríveis para que o povo não precise ser”. A frase de Danton, recuperada pelo Primo Número 1 do Camboja, se torna um bom resumo desta abordagem a respeito das contradições das ditaduras. Aborda em profundidade a violência disfarçada de paz, a guerra em nome do respeito às leis, a impressão de que o povo precisa ser preservado de si mesmo. Explora-se o povo real em nome da defesa do povo enquanto conceito filosófico. Panh conta com boas atuações de seu trio central, junto a imagens estáticas e um tanto discretas, para fornecer a impressão de que, por trás dos apertos de mão e conversas amigáveis, existe um banho e sangue ocorrendo a poucos quilômetros dali. A representação pela ausência sempre constituiu uma ferramenta fascinante para o cinema político.

Encontro com o Ditador (2024)
7
Nota 7/10

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