Mentes Extraordinárias (2021)

O artista deficiente como protagonista

título original (ano)
Presque (2021)
país
França, Suíça
gênero
Drama, Comédia
duração
92 minutos
direção
Bernard Campan, Alexandre Jollien
elenco
Bernard Campan, Alexandre Jollien, Tiphaine Daviot, Marilyne Canto, Julie-Anne Roth, La Castou, Marie Benati, Anne-Valérie Payet, Laëtitia Eïdo
visto em
Cinemas

A sequência de abertura de Mentes Extraordinárias (2021) coloca dois homens em paralelo. Louis (Bernard Campan) trabalha como agente funerário, levando uma rotina morna. Já Igor (Alexandre Jollien), rapaz com deficiência, faz entregas de verduras e legumes em bicicleta, enquanto tenta formar laços de amizade com colegas que o rejeitam. A montagem paralela antecipa o encontro iminente entre os dois, colocando-os na posição de protagonistas. Ainda não sabemos de que forma se unirão, mas fica claro que seguirão caminho juntos.

A aparente previsibilidade poderia se estender aos aprendizados. Como ambos são apresentados na condição de figuras solitárias, terminariam por se completar e formar uma amizade inabalável — motor comum tanto aos buddy movies quanto aos road movies. Seria conveniente que Louis, incapaz de receber afeto, e Igor, transbordando de afeto para dar, se completassem, e encontrassem um meio-termo saudável entre a amargura e a carência. Esta é a receita típica dos filmes indie norte-americanos, do tipo que monopoliza o festival de Sundance anualmente.

Algumas dessas promessas se concretizam, porém, com moderação. Boas surpresas aparecem ao longo do percurso para afastar a ideia simplória de inserção social de deficientes por meio da boa vontade, e do caráter salvacionista de homens brancos em fase de redenção. O cinema costuma observar sujeitos com deficiência pelo prisma da piedade e do paternalismo, depositando sobre o colega/acompanhante não-deficiente a tarefa de aceitá-lo e ajudá-lo. No fim, costumam ser estes últimos os verdadeiros heróis, enquanto pessoas com mobilidade reduzida ou disfunções cognitivas permanecem na condição de objetos de estudo, observadas de um ponto de vista externo.

Aqui, em contrapartida, Igor assume o protagonismo. Ao invés de se lançar na aventura por benevolência e encorajamento de Louis, é o rapaz deficiente, e apaixonado por filosofia, que toma as rédeas da viagem. Ele consegue um emprego por conta própria, decide sair de casa e viajar sozinho, conhece novos amigos de maneira autônoma. Em última instância, é ele quem dita os rumos da jornada, cabendo ao colega reagir a estes estímulos — não para salvá-lo nem protegê-lo, somente para impor sua opinião. Enxergamos o mundo pelo olhar de Igor.

Nenhum dos dois será tratado como vítima, nem como sujeito inerentemente bondoso ou virtuoso. […] A deficiência ou a capacidade plena não os define: eles possuem trabalhos, vidas afetivas, gostos e ambições. 

Além disso, a liderança se estende ao controle criativo. Quantos longas-metragens dirigidos, escritos e estrelados por indivíduos com deficiência você já viu? Mentes Extraordinárias é criado e dirigido pela dupla Bernard Campan e Alexandre Jollien, que assume os papéis principais. Este último empresta ao personagem certos traços de si próprio: o artista também é filósofo e escritor, além de ter sofrido no nascimento com um cordão umbilical preso ao pescoço, conforme relata Igor às amigas de passeio. Campan e Jollien já trabalharam juntos em outro roteiro no passado.

A intimidade desta parceria e o controle do processo narrativo (Campan co-produz a obra) se traduz no tom agridoce que evita os lugares-comuns propícios à aproximação. Não, o pneu do carro fúnebre não fura durante a viagem dos dois rumo a um velório. Igor tampouco se mete em risco de vida, precisando de auxílio emergencial. Quando Louis parte em busca do colega, com medo de vê-lo em apuros pela noite de Marseille, encontra o colega se divertindo muito bem sozinho. Uma prostituta contratada pelo agente passa longe de qualquer representação fetichista destas profissionais.

Em especial, nenhum dos dois será tratado como vítima, nem como sujeito inerentemente bondoso ou virtuoso. Isso significa que o espectador não é convidado a se identificar com os personagens por suas qualidades, mas por suas falhas humanas, presentes em quaisquer um: o especialista em arranjos funerários se mostra arisco, mesmo grosseiro; enquanto o entregador pode ser insistente demais, e rude com a mãe idosa. A deficiência ou a capacidade plena não os define: eles possuem trabalhos, vidas afetivas, gostos e ambições. 

A direção consegue equilibrar o teor feel good e otimista com cenas de humor situacional. Para cada abraço dos amigos no pôr do sol e corrida juntos para saltarem num lago belíssimo (com uso controlado de trilha sonora, vale dizer), há pequenas pérolas do humor puramente estético espalhadas pela imagem. Enquanto procura pela prostituta num aplicativo de celular, observando com desejo as fotos de mulheres seminuas, Louis recebe a foto de um novo cadáver pronto para o enterro, o que lhe retira o apetite. Adiante, Igor finge ser um homem com deficiência muito mais grave do que a sua para se livrar de uma multa.

O caráter um pouco açucarado, sobretudo no último terço, é atenuado pela construção respeitosa e minimalista dos dois homens cuja solidão se desenha sem um diálogo sequer, apenas observando suas noites nos respectivos apartamentos. O texto discute a natureza da morte e a maneira como lidamos com o tema no Ocidente, passando por Nietzsche, Platão, Espinosa e Epicuro. Personagens deficientes raramente simbolizam uma fonte de sabedoria institucional (apenas moral), de modo que as afirmações de Igor possibilitam uma quebra de ritmo, além de uma inesperada gravidade em instantes leves.

Alguém ainda há de estudar a razão pela qual o crescimento pessoal de indivíduos com deficiência é tão intimamente conectado ao road movie — vide Colegas (2012), Os Melhores Dias de Nossas Vidas (2004), Amizades Improváveis (2016) e Come As You Are (2019). Seria pelo simples fato que, para pessoas presas a cadeiras de roda e aos cuidados rígidos de familiares, o imperativo do movimento constituiria a maior transgressão possível? De qualquer modo, a ideia de liberdade se reflete diferentemente para estas figuras, inseridas em tramas com tendência à leveza e à autocrítica.

Em outras palavras, os filmes nunca apontam os dedos ao espectador, julgando-o por seus preconceitos, apenas esperam que se sensibilizem para um maior cuidado com o próximo. É possível sugerir que Mentes Extraordinárias atinge o objetivo proposto: oferecer uma reflexão a respeito do capacitismo e deficiência para além do chavão moralista da pregação religiosa (“ame ao próximo como a si mesmo”) e dos pressupostos constitucionais básicos (“todos nascemos iguais etc”).

Os autores visam o público amplo a partir de um “filme do meio”, nem tão acessível a ponto de usar piadas fáceis (nada de pessoas tropeçando e caindo no chão), nem exigente a ponto de alienar o público avesso a projetos de teor reflexivo e questionador. Observando por uma ótica bastante pragmática, conseguiu unir crítica e público: enquanto a primeira ofereceu textos generosos, majoritariamente positivos, o segundo respondeu com a marca de 500 mil espectadores na França.

Mentes Extraordinárias (2021)
7
Nota 7/10

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