A princípio, Ernest Cole: Achados e Perdidos apresenta a estrutura mais convencional possível para o cinema documentário. O diretor Raoul Peck alterna a narração descritiva em off com material de arquivo e eventuais entrevista com familiares do protagonista. Inicia e encerra a experiência por meio de letreiros explicativos, e ocasionalmente insere trilha sonora grave para conduzir as emoções do espectador (sobretudo na abertura). Mesmo as fotografias de Cole são utilizadas na forma de slides sucessivos, com pequenos zoom-ins ocasionais em trechos da imagem.
Assim, os primeiros minutos despertam pouca expectativa de encontrarmos uma obra instigante em termos de discurso e estética. O cineasta constrói pouquíssimas imagens por conta própria, preferindo trabalhar dentro da rígida configuração do filme de arquivo, manipulando e organizando captações alheias. Ainda assim, recusa-se a promover qualquer fricção de linguagem, ou mesmo ambiguidade de discurso, a partir das fotografias tiradas pelo protagonista. A montagem, ainda mais destacada neste caso, tampouco opta por invencionices formais de qualquer espécie.
Fatos misturam-se a lembranças e a emoções pressupostas — o autor assume um alto teor de ficcionalização neste documentário. Na voz de LaKeith Stanfield, Cole chega inclusive a narrar a própria morte.
Entretanto, as qualidades decorrem da sofisticação de pensamento aplicada a uma cartilha tão básica. Digamos que Peck extrai o melhor de tais interações comportadas entre som e imagem. Um destaque reside no trabalho de narração. Cria-se um texto de tom autobiográfico, entoado por uma versão ficcionalizada de Ernest Cole, na voz LaKeith Stanfield. O ator desenvolve uma fala simples, de volume grave e baixo, quase sussurrado. Evita os arroubos de emoção de qualquer forma: assim, o Cole sonhado discorre acerca do racismo, da tortura e do desprezo por sua arte sem qualquer forma de autopiedade (nem de comiseração pelos olhos da direção).
O texto é fenomenal. Teria sido simples apenas constatar a existência de abusos de direitos humanos na África do Sul, e rememorar a existência do apartheid. Ora, o roteiro do próprio Peck vai muito além. Pondera, indaga e questiona numa costura orgânica entre a filosofia e as constatações próximas à sociologia, à antropologia e à história. “Alguns policiais brancos decidiram que o mundo era normal”, afirma o narrador. “Se você fica quieto, acham que está feliz. Se reclama, acha que está sendo ingrato”, sublinha, a respeito do trabalho análogo à escravidão para pessoas negras. O teor se aproxima de uma ruminação interna, como se Cole estivesse dialogando consigo mesmo, lendo em voz baixa seu diário íntimo.
Logo, fatos misturam-se a lembranças e a emoções pressupostas — o autor assume um alto teor de ficcionalização neste documentário. Na voz de Stanfield, Cole chega inclusive a narrar a própria morte, enquanto descreve os sentimentos da mãe durante o funeral. Portanto, em chave literária, demonstra o ressentimento pela desvalorização das imagens captadas em terra estrangeira, assim como minimiza o impacto de sua principal obra, House of Bondage. Critica a interpretação do público geral, para quem as fotografias constituíam uma grande denúncia do apartheid. Na voz do personagem, esta teria sido uma confissão pessoal de pretensões modestas. Mas a política seria parte indissociável da vida de um jovem artista negro na África do Sul durante a segregação.
Neste aspecto, o longa-metragem possui um interesse particular. A narrativa evita vangloriar as captações do fotógrafo, posicionando-se acima dos demais artistas de sua época. Este não é um filme-homenagem, nem um cinema saudoso e comemorativo. Pelo contrário, o diretor se apropria da história de um sujeito de sucesso pontual e limitado. Cole foi rejeitado por suas publicações pós-House of Bondage, perdendo a estabilidade financeira e emocional. Em consequência, chegou a dormir nas ruas. Morreu antes de comemorar 50 anos, num período de crise profunda. Raros filmes dedicam-se ao percurso de artistas de pouco renome, ou com reconhecimento mediano por seus pares. O resgate de Cole vai além da história pessoal — reivindica-se também um status social, enquanto se luta contra o apagamento de indivíduos negros cujos esforços foram soterrados pelo sistema.
“Nova York é uma cidade sem alma. Ninguém olha para o céu aqui”. Ernest Cole: Achados e Perdidos se posiciona sempre junto à subjetividade deste homem, evitando qualquer julgamento moral. Tece fortíssimas críticas tanto à política sul-africana quanto à pretensa democracia meritocrática dos Estados Unidos. O (anti-)herói foi recusado enquanto cidadão de seu país, e tampouco se inseriu a contento na América, ou mesmo nos outros países onde residiu por tempo limitado (Suécia, Dinamarca, Inglaterra). Tornou-se um homem esquecido, invisível, cujos materiais se perderam durante décadas, até serem redescobertos num banco sueco, por motivos que a instituição nunca explicou de fato. Muitas das belas imagens exibidas no filme possuem um caráter próximo do ineditismo.
Por estes motivos, o filme sustenta uma aparência fantasmática, tal qual uma lamentação gentil, porém avessa à indignação. Comentam-se inúmeras injustiças e violências, porém, dispensando o convite para que o espectador se rebele contra elas. Fala-se do ponto de vista de alguém que atravessou todas essas opressões sem testemunhar nenhuma melhoria de fato. Em consequência, é compreensível certo tom derrotista, quase conformista, face às adversidades enfrentadas por Cole. Ao invés de denunciar falhas de um capitalismo explorador, Peck dá um passo atrás e nos lembra que, em primeiro lugar, precisamos conhecer a história de tantas pessoas esquecidas por este sistema. Trata-se de um movimento inicial de empatia.
É certo que, em determinados momentos, a narrativa se apequena. A entrevista com o sobrinho, que detém os direitos sobre o trabalho do tio, soa tão protocolar (uma imposição da família, talvez?) que rompe com a impressão de honestidade da narração em off. A direção evita a todo custo mergulhar em qualquer aspecto da vida privada de Cole, mesmo quando ela parece evidente e acessível — a exemplo dos vários amigos e amigas com quem dividiu apartamento, e da mãe que volta para prestar socorro nos últimos dias do fotógrafo. As telas divididas em duas ou três partes, com fotografias deslizando pelos fragmentos, jamais constituem uma maneira particularmente inventiva ou producente para esmiuçar o olhar do protagonista.
Mesmo assim, a obra se encerra de maneira bastante positiva. É possível que, pela decisão de evitar qualquer sentimentalismo, soe fria e impessoal demais. O longa-metragem tateia o caminho entre a confissão em primeira pessoa e a vontade de soar como uma evocação fatual a respeito da vida e obra de Cole. Busca seu meio-termo entre objetividade e subjetividade, entre dados e pressuposições. Termina por oferecer um retrato humano multifacetado, desprezando respostas fáceis às diversas perguntas que elabora. Ao final da sessão, ainda ignoramos diversos aspectos deste homem, posto que faleceu na condição de mistério, com tantas lacunas de documentos acerca de suas viagens e projetos. Peck foge à armadilha de explicar Cole, preferindo evocá-lo e representá-lo. Esta decisão consolida o valor artístico da empreitada.