Fresh (2022)

É sempre culpa dos homens

título original (ano)
Fresh (2022)
país / gênero
EUA / Comédia, Terror
Duração
114 minutos
direção
Mimi Cave
elenco
Daisy Edgar-Jones, Sebastian Stan, Jojo T. Gibbs, Andrea Bang, Dayo Okeniyi, Charlotte Le Bon, Brett Dier, William Belleau
visto em
Star+

Desde o princípio, Fresh (2022) se afirma como uma obra do seu tempo. É certo que todo filme seria sintoma de sua época, se visto deste modo, porém o filme de terror surpreende pela autoconsciência. A diretora Mimi Cave parece dominar as referências do body horror, dos filmes de estupro e vingança, dos suspenses de sequestro e mesmo do sexploitation para subvertê-lo numa perspectiva ostensivamente feminista. Assim como o interessante Natal Sangrento (2019) se propôs a reler o slasher por uma perspectiva da autonomia feminina, e Titane (2021) propôs uma inversão na relação de força entre gêneros, esta produção independente imagina uma revanche simbólica das mulheres contra o patriarcado.

No entanto, a produção se inicia por caminhos seguros e previsíveis. Noa (Daisy Edgar-Jones) tem um péssimo encontro com um rapaz narcisista conhecido via aplicativo de celular. Depois, acredita estar sendo seguida por um vulto masculino numa viela escura. O roteiro se abre com o medo da violência, servindo como prelúdio do que estará por vir — sabemos que, em breve, ela encontrará mais um rapaz perigoso. Neste universo, todos os homens são assassinos, machistas ou negligentes, e para aqueles preocupados com a generalização do preceito (“mas nem todos os homens são assim!”), vale lembrar que se trata de uma fábula, dotada de caráter exemplar e de uma moral na conclusão. O exagero se torna proposital, assim como o aspecto didático do discurso.

É interessante que o vilão da trama seja justamente o sujeito que parece fugir ao comportamento predatório encontrado por Noa nos encontros virtuais. Steve (Sebastian Stan) aparenta ser um homem comum, real, encontrado in loco num supermercado, do tipo que fica encabulado, sem encontrar as palavras certas diante de uma mulher bonita – rompendo, portanto, com a autoconfiança paródica dos rapazes anteriores. Quando ela aceita trazê-lo para casa, e depois partir numa viagem surpresa com o tipo conhecido há apenas dois encontros, sabemos que a iniciativa será traumática. A cineasta utiliza este preceito menos como maneira de subestimar a inteligência da heroína, do que como ferramenta para mostrar a inevitabilidade da violência. 

Por isso, o terço inicial possui o caráter de um romance tradicional, com direito a trilha sonora doce, fundos desfocados durante os beijos no bar, flares românticos preenchendo o enquadramento, planos de detalhe dos olhos desejantes dele e dela. Mas o terror logo se impõe, através da linguagem: passados 30 minutos, os créditos surgem na tela, em design distorcido e típico do horror, acompanhado de música de suspense e do típico plano aéreo de um carro circulando por uma estrada vazia entre árvores altíssimas. Fresh jamais esconde o destino de ambos os personagens, muito pelo contrário: sabemos que Steve será perigoso, e que Noa se tornará vítima dele.

O interesse de Cove encontra-se, portanto, na possibilidade de subverter as regras abraçadas até então. Primeiro, Mollie (Jojo T. Gibbs), a amiga negra e bissexual desprovida de vida própria, que servia apenas para dar a réplica à heroína, passa a ter uma função importante no desenvolvimento da trama. Segundo, um personagem preparado longamente para desempenhar o papel de salvador terá um destino muito diferente do imaginado — o mesmo valendo para a esposa do agressor. Terceiro, as vítimas jamais se restringem ao caráter de mártires, articulando em silêncio uma estratégia para reagir aos ataques sofridos. 

Fresh jamais esconde o destino de ambos os personagens, muito pelo contrário: sabemos que Steve será perigoso, e que Noa se tornará vítima dele.

Existe um caráter perverso, e ainda mais interessante, na figura de um cativeiro onde se escutam os sons da cela ao lado, fechado por portas com frestas que permitem observar os corredores. O filme brinca de maneira eficaz com cenários próximos do surrealismo — vide a natureza pintada na parede da cela, o jantar romântico com uma jovem sequestrada, os espelhos refletindo a mutilação dos corpos e multiplicando o rosto do antagonista. Cove explora os espelhos, reflexos, sombras e também o espaço icônico da floresta escura e coberta de névoa, espaço de predileção do cinema de horror.

Atenção: possíveis spoilers a seguir.

A carne adquire um papel fundamental na narrativa, mas também nas relações eróticas. Os clientes que compram os caros pedaços de carne humana buscam não apenas se alimentar, mas também domar, devorar literalmente a vítima. Eles recebem os pertences e fotos de suas presas, numa associação interessante da violência enquanto fetiche. O ato de “comer” uma pessoa, nos sentidos literal e sexual, adquire um teor extremo neste dispositivo: há notável prazer em descobrir que se está comendo a carne de uma mulher viva, presa. As explicações de ordem ritualística, transformando o corpo da vítima num objeto precioso, reforçam o raciocínio de um machismo que acredita honrar as mulheres ao controlar seus corpos e limitar sua autonomia.

Além disso, a comida navega por simbologias distintas ao longo da narrativa: Noa e Steve se encontram na seção de legumes, e a garota devora pequenas cenouras cruas, diante do namorado que afirma ser vegetariano. A amiga também consome saladas enquanto pesquisa sobre o destino da heroína desaparecida. Conforme o terror se instaura, as refeições se fazem mais grosseiras, e também mais caras: são os homens que se empanturram de carne, contra as mulheres afamadas. Raw (2016), de Julia Ducournau, também encontrava no canibalismo e na carne crua uma metáfora potente das relações de dominação dos homens sobre as mulheres.

O desenvolvimento possui uma carga não negligenciável de absurdos, é claro: o esquema médico com múltiplas cirurgias e cuidados pós-operatórios é mantido por um único homem; Mollie decide confrontar os algozes sem qualquer planejamento de fuga ou proteção. De certo modo, o destino de Noa e Mollie é selado a partir do momento que dão um voto de confiança aos homens, apenas para perceberem que o romantismo idealizado não existe mais. “Não é nossa culpa. Sempre é culpa deles”, alerta uma das garotas em cativeiro. De certo modo, essa seria a mensagem da produção: pouco importa se Noa deu confiança ao namorado rápido demais, ou se Mollie foi imprudente ao encontrar os vilões com uma estratégia tão franca. Elas não mereciam ser capturadas, ponto final. 

Fresh parte de algumas formas de terror tipicamente moralizantes, nas quais se objetifica o corpo da mulher agredida, para então preservar a nudez, evitar o espetáculo da violência (nunca vemos pedaços de carne sendo dilacerados de fato) e desenhar uma espécie de sororidade revolucionária. É certo que as cirurgias jamais parecem realistas, e o pós-operatório soa absurdo. O clichê das vítimas que dão um único golpe no vilão e saem correndo, ao invés de continuarem golpeando, também se mantém. Cove não destrói tantas convenções quanto poderia, em contrapartida, oferece uma diversão cinéfila e autorreferencial, percebendo como o machismo considerado natural em tantas formas de horror pode ser sublinhado e exagerado em perspectiva crítica. 

Fresh (2022)
7
Nota 7/10

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