O Beco do Pesadelo (2021)

Monstros e monstruosidades

título original (Ano)
Nightmare Alley (2021)
País / gênero
EUA, México, Canadá / Policial, Suspense
Duração
150 minutos
direção
Guillermo Del Toro
elenco
Bradley Cooper, Cate Blanchett, Rooney Mara, Toni Collette, David Strathairn, Willem Dafoe, Richard Jenkins, Mary Steenburgen, Holt McCallany
visto em
Cinemas

O Beco do Pesadelo (2021) parte de um cenário repleto de monstros “oficiais”, concebidos para o espetáculo. Dentro de uma feira de variedades durante a Segunda Guerra Mundial, apresentam-se uma garota capaz de levar choques fortes, um sujeito animalesco que devora galinhas vivas, outro que exibe fetos de animais e humanos abortados. O show reside no contato com a alteridade extrema, capaz de provocar repulsa e fascinação ao mesmo tempo. “As pessoas pagam para se sentir superiores”, explica Clem (Willem Dafoe).  

Aos poucos, no entanto, o roteiro começa a apresentar outras formas de monstruosidade, compreendidas enquanto falhas morais. O primeiro elemento se encontra na própria guerra, anunciada em segundo plano, e legitimando simbolicamente alguns excessos e desvios da norma — afinal, as trapaças de ordem local parecem insignificantes em comparação com as mortes em massa. Este seria um tempo de exceções, um parêntese na História. O segundo elemento reside no encontro entre ilusão e mentira: para além de mágicos ou profissionais do entretenimento, os personagens são falsários, manipuladores emocionais, exploradores da miséria alheia.

Este aspecto suscita as principais qualidades do longa-metragem: a discussão sobre o valor da imagem enquanto diversão ou exploração. Guillermo Del Toro transforma o livro original, escrito por William Lindsay Gresham, num comentário acerca da potência da ficção e, principalmente, da vontade de crença. Inicialmente, os clientes tolos, enganados por falsas videntes, se prestam ao jogo graças à busca de alguém que os escute. Em seguida, homens milionários e poderosos se sentem amparados pela figura de um sujeito dotado da rara habilidade de conhecer seus segredos profundos. 

Stanton Carlisle (Bradley Cooper), farsante assumido, desempenha um papel real neste contexto: ele fornece um alívio às pessoas, apesar de estar baseado em emoções falsas. Os limites da moral se diluem devido às necessidades da trupe decadente. Por isso, os relacionamentos com o público se multiplicam entre o espetáculo da dor (a garota levando choques), da selvageria (o tipo que devora galinhas vivas), da mediunidade, e uma psiquiatra real, cujo amparo profissional se mistura aos golpes circenses. Todos eles representam, em maior ou menor medida, criadores de histórias, dispostos a adequar suas narrativas ao desejo do público. 

Del Toro dialoga com seus personagens em vocação crítica. No entanto, ele jamais despreza estas figuras de caráter duvidoso, preferindo direcionar o olhar questionador ao próprio sistema. Existe notável carinho por Stanton, espécie de Ícaro devorado pela própria ambição, além de Molly (Rooney Mara), garota sonhadora a quem se oferece uma perspectiva inédita de riqueza; Zeena (Toni Collette), pretensa vidente dotada de uma ética rígida que proíbe maltratar os clientes, e Pete (David Strathairn), o marido desta, corroído pelos anos de prática, pela bebida e pela falta de perspectivas. Eles serão os algozes uns dos outros, mas também vítimas de um sistema opressor, e membros de uma família de conveniência. 

Teria sido fácil filmar a sujeira (concreta e moral) de maneira repugnante, mas o diretor traça o caminho inverso, oferecendo imagens elegantes da degradação humana.

Os complexos laços entre personagens se justificam na primeira metade da aventura, quando os artistas simplesmente chegam até o herói e explicam seus segredos, confessam seus desejos, oferecem trabalho e moradia. Sem falar uma palavra sequer durante mais de dez minutos, Stanton é acolhido pelo grupo. Enquanto ferramenta de roteiro, o recurso soa acessório — seria conveniente demais que os personagens explicassem tudo de que o forasteiro (e o espectador) precisam saber sem serem estimulados para tal. Numa chave psicológica, entretanto, o movimento pode ser compreendido pelo sentimento de orfandade e abandono destas pessoas, interessadas em falar sobre si mesmas, em se aproximar da única figura nova das redondezas. Os clientes pagantes não são os únicos em busca de afeto e atenção. 

A segunda metade, em contrapartida, explora as derivas da ambição. Este homem médio e sem qualidades, fugindo de um crime no passado, sente-se potente, dominador, adorado. Ele se embriaga da admiração, testando seus limites em desafios crescentes, até a inevitável queda. Del Toro filma esta jornada numa mistura vertiginosa de circo e teatro de horrores. As luzes impecáveis e a imagem nítida servem a reforçar a decadência: vemos em detalhes a lama do chão, a precariedade dos trailers, o desgaste das roupas e a simplicidade da comida. O desespero de um sujeito sujo e ensanguentado, ou o foco em cabeças destruídas e orelhas explodidas por uma bala, sublinham o caráter asqueroso daquelas situações. Em certa medida, teria sido fácil filmar a sujeira (concreta e moral) de maneira repugnante, mas o diretor traça o caminho inverso, oferecendo imagens elegantes da degradação humana.

Para alguns olhares, a estetização de espaços e luzes seria incompatível com o tema retratado. Ora, pode-se ler tamanho apuro em cenários e figurinos como uma decisão de abraçar o caráter de pesadelo e de fantasia, emprestando ao cinema de gênero sua capacidade implacável de comentar os aspectos mais sombrios da realidade. Os amplos espaços repletos de objetos e móveis, porém vazios de personagens, fornecem uma impressão de luxo inútil, aproximando o consultório da doutora Lilith Ritter (Cate Blanchett) de um bar kitsch. Os espaços comunicam o desejo de transmitir um poderio falso, fictício, cujos ornamentos escondem a vacuidade de quem os ocupa.

Não por acaso, o grande clímax ocorre na descoberta de uma ficção, quando uma das enganações enfim é descoberta. Rompe-se o pacto de suspensão da descrença: os tipos que concordavam tacitamente em ser enganados se revelam incapazes de seguir com esta manipulação terapêutica consentida por ambas as partes. O filme irrompe em violência quando a ficção recusa a se comportar como tal, revelando a triste farsa por trás da sugestão de um encontro com os mortos. Os personagens irritam-se menos pela enganação do que pela suspensão deste pacto de solidariedade e acolhimento. Assim, o sangue falso das mãos de uma garota se transformará em sangue real, o Selvagem “temporário” converte-se num monstro real. 

Por fim, somos capazes de rir de uma tragédia, contanto que pareça simulada, orquestrada para o nosso olhar. Assim, ela aparenta existir apenas para uma plateia, desaparecendo assim que desviamos o foco à atração seguinte. O Beco do Pesadelo efetua o caminho pessimista e cruel de retirar todos os véus da atração, revelando a monstruosidade que permanece nas coxias, mesmo quando ninguém mais a observa. Com suas luzes pomposas e cenários circenses, confronta-nos à vontade de nos iludir quando o mundo ao redor soa duro demais. Se no início o nosso olhar se identificava com o esperto ilusionista em ascensão, no final, encontramo-nos junto ao Selvagem. 

O Beco do Pesadelo (2021)
8
Nota 8/10

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