Green Grass provoca estranhamento desde as primeiras imagens. Um rapaz caminha numa casa escuríssima. O ambiente interno é cinzento, com luzes tão baixas que dificultam distinguir o dia da noite. Ele chega a uma praia repleta de objetos metálicos jogados pela areia — neste espaço, seu corpo se assemelha a mais um cacareco trazido pelas ondas. O homem não sabe onde se encontra. Fala em japonês, mas escuta vozes em espanhol. Pergunta às pessoas o que está acontecendo, embora suas súplicas sejam ignoradas.
É revigorante encontrar formas criativas de provocar distanciamento e desenvolver a ambientação. No Bonito Cine Sur, os primeiros longas-metragens exibidos apelavam às ferramentas desgastadas dos moldes norte-americanos: montagem fragmentada, zooms agressivos, aceleração das imagens, efeitos sonoros altos e saturados, trilha sonora incansável. No caso da obra chilena-japonesa, o cineasta Ignacio Ruiz brinca com registros de base, e por isso mesmo, mais interessantes em termos de manipulação: a saturação, o contraste, a nitidez.
Percebemos com rapidez que Makoto (Masataka Ishizaki) está morto. Esta revelação rompe com expectativas, por dispensar qualquer fator de choque ou espetáculo. A descoberta ocorre de maneira tranquila, banal. Aqui, o realismo fantástico convive com o naturalismo: a presença de uma alma errante não surpreende ninguém, até porque as figuras ao redor também vagam em busca de um destino. A caracterização destes personagens sustenta aparência idêntica àquela de uma pessoa viva. Cabe ao ambiente, e à estética, representar a existência fluida dos personagens.
É curioso se deparar com uma estética tão laica para discutir a espiritualidade, e uma abordagem tão plácida para o tema da morte.
A propósito de fluidez, impressiona no longa-metragem a capacidade de embaralhar as percepções de tempo e espaço. Ambos são fundamentais na narrativa: o vilarejo fantasma, a casa dos mortos e a floresta por onde perambula Makoto, por um lado, e o processo do luto realizado pelo pai Kiyoshi (Tokuma Nishioka) em paralelo à autodescoberta do protagonista, por outro. No entanto, desconhecemos a localização exata da praia, ou a duração do amadurecimento emocional de ambos. Esforça-se para mostrar um não-lugar, além de um tempo incontável.
Em consequência, Ruiz elabora uma peculiar asfixia a céu aberto, numa planície labiríntica, apesar de sem fronteiras. Makoto se desloca o tempo inteiro, porém jamais sai do lugar. Sempre pega carona numa caminhonete azul que não o leva a lugar nenhum. Aproxima-se da praia e ameaça partir em alto mar, apenas para retornar à casa no final do dia, e desfrutar da mesma xícara de chá com os moradores. A repetição e a imobilidade se tornam fatores fundamentais à trama.
Green Grass poderia ser descrito enquanto fábula metafísica. O cineasta toma todas as medidas necessárias para que suas analogias não se tornem excessivamente amplas, ao ponto da aleatoriedade. No entanto, ainda permite um punhado de leituras pertinentes a partir desta jornada. Em primeiro lugar, a alma de Makoto estaria presa à ilha, enquanto o pai, do outro lado do mundo, não estiver disposto a deixá-lo partir. Ainda que distantes fisicamente e apartados pela morte, pai e filho permanecem indissociáveis.
Sugere-se igualmente que as seduções e as escolhas não se interrompem com o final da vida. Makoto estabelece uma relação dúbia com um Caronte traiçoeiro, que promete levá-lo de volta à vida terrena num barco, antes mesmo de uma autocompreensão completa. Ademais, pode-se falar numa obra religiosa, ou pelo menos, transcendental. Eliminam-se as noções de céu e inferno através deste pretenso purgatório cuja permanência depende, em última instância, do próprio frequentador. Unem-se as pontas da psicologia e da filosofia, ou da subjetividade e da espiritualidade.
Aos poucos, o filme ganha cores. Sem pressa, a névoa inicial se dissipa, o calor chega às paisagens e às pessoas. Enfim, a obra dessaturada terá pleno contraste, cor, nitidez. Contrariamente ao aspecto fatual das primeiras sequências, surgem elementos de fantasia, cada vez mais extravagantes: as plantas crescendo rapidamente, as roupas que caem do céu. Makoto praticamente se funde com a natureza (vide a cena de nudez), que lhe retribui tamanho apreço.
Em virtude do teor etéreo do projeto, as atuações se prestam à performance. Nenhum corpo ou fala nesta ilha corresponde aos princípios habituais de atuação. Representam corpos presentes, disponíveis, manifestando olhares de contemplação. Curiosamente, resta ao Japão, terra associada à fantasia no imaginário popular, a parcela mais naturalista da jornada, enquanto o Chile se reveste de mistérios e magias. A decisão de separar geograficamente a vida da morte (reservando a um país a vida, e ao outro, o pós-vida) também merece destaque.
O resultado pode soar hermético demais à maioria do público. No Bonito Cine Sur, os espectadores pouco habituados ao cinema autoral estranhavam as sequências, o ritmo, as analogias. Em tempo de aceleração e entretenimento, o cinema que exige uma participação ativa do espectador (convidado a decifrar seus significados e projetar as próprias interpretações) se prova exigente demais a quem busca alguma forma de escapismo inofensivo. Ruiz nunca facilita a tarefa ao espectador com frases explicativas ou recompensas emocionais fáceis rumo à conclusão, ainda que amarre todas as pontas soltas.
Por isso mesmo, propõe um recorte autoral interessante. Admira-se a chegada ao circuito de um cineasta jovem, de pretensões criativas evidentes, porém distantes de vaidades ou exibicionismos. Todos os recursos de som, fotografia e edição são coesos, dedicados a contar da melhor maneira esta viagem aos confins si próprio. É curioso se deparar com uma estética tão laica para discutir a espiritualidade, e uma abordagem tão plácida para o tema da morte.