Green Grass (2022)

A vida dos mortos

título original (ano)
Green Grass (2022)
país
Chile, Japão
gênero
Drama, Fantasia
duração
100 minutos
direção
Ignacio Ruiz
elenco
Masataka Ishizaki, Tokuma Nishioka, Yukiyoshi Ozawa, Nicolas Toro, Ximena Rivas, Nicolle Romero Jarufe, Daniel Candia, Tomas Schuller
visto em
1º Bonito Cine Sur (2023)

Green Grass provoca estranhamento desde as primeiras imagens. Um rapaz caminha numa casa escuríssima. O ambiente interno é cinzento, com luzes tão baixas que dificultam distinguir o dia da noite. Ele chega a uma praia repleta de objetos metálicos jogados pela areia — neste espaço, seu corpo se assemelha a mais um cacareco trazido pelas ondas. O homem não sabe onde se encontra. Fala em japonês, mas escuta vozes em espanhol. Pergunta às pessoas o que está acontecendo, embora suas súplicas sejam ignoradas.

É revigorante encontrar formas criativas de provocar distanciamento e desenvolver a ambientação. No Bonito Cine Sur, os primeiros longas-metragens exibidos apelavam às ferramentas desgastadas dos moldes norte-americanos: montagem fragmentada, zooms agressivos, aceleração das imagens, efeitos sonoros altos e saturados, trilha sonora incansável. No caso da obra chilena-japonesa, o cineasta Ignacio Ruiz brinca com registros de base, e por isso mesmo, mais interessantes em termos de manipulação: a saturação, o contraste, a nitidez.

Percebemos com rapidez que Makoto (Masataka Ishizaki) está morto. Esta revelação rompe com expectativas, por dispensar qualquer fator de choque ou espetáculo. A descoberta ocorre de maneira tranquila, banal. Aqui, o realismo fantástico convive com o naturalismo: a presença de uma alma errante não surpreende ninguém, até porque as figuras ao redor também vagam em busca de um destino. A caracterização destes personagens sustenta aparência idêntica àquela de uma pessoa viva. Cabe ao ambiente, e à estética, representar a existência fluida dos personagens.

É curioso se deparar com uma estética tão laica para discutir a espiritualidade, e uma abordagem tão plácida para o tema da morte.

A propósito de fluidez, impressiona no longa-metragem a capacidade de embaralhar as percepções de tempo e espaço. Ambos são fundamentais na narrativa: o vilarejo fantasma, a casa dos mortos e a floresta por onde perambula Makoto, por um lado, e o processo do luto realizado pelo pai Kiyoshi (Tokuma Nishioka) em paralelo à autodescoberta do protagonista, por outro. No entanto, desconhecemos a localização exata da praia, ou a duração do amadurecimento emocional de ambos. Esforça-se para mostrar um não-lugar, além de um tempo incontável.

Em consequência, Ruiz elabora uma peculiar asfixia a céu aberto, numa planície labiríntica, apesar de sem fronteiras. Makoto se desloca o tempo inteiro, porém jamais sai do lugar. Sempre pega carona numa caminhonete azul que não o leva a lugar nenhum. Aproxima-se da praia e ameaça partir em alto mar, apenas para retornar à casa no final do dia, e desfrutar da mesma xícara de chá com os moradores. A repetição e a imobilidade se tornam fatores fundamentais à trama.

Green Grass poderia ser descrito enquanto fábula metafísica. O cineasta toma todas as medidas necessárias para que suas analogias não se tornem excessivamente amplas, ao ponto da aleatoriedade. No entanto, ainda permite um punhado de leituras pertinentes a partir desta jornada. Em primeiro lugar, a alma de Makoto estaria presa à ilha, enquanto o pai, do outro lado do mundo, não estiver disposto a deixá-lo partir. Ainda que distantes fisicamente e apartados pela morte, pai e filho permanecem indissociáveis.

Sugere-se igualmente que as seduções e as escolhas não se interrompem com o final da vida. Makoto estabelece uma relação dúbia com um Caronte traiçoeiro, que promete levá-lo de volta à vida terrena num barco, antes mesmo de uma autocompreensão completa. Ademais, pode-se falar numa obra religiosa, ou pelo menos, transcendental. Eliminam-se as noções de céu e inferno através deste pretenso purgatório cuja permanência depende, em última instância, do próprio frequentador. Unem-se as pontas da psicologia e da filosofia, ou da subjetividade e da espiritualidade.

Aos poucos, o filme ganha cores. Sem pressa, a névoa inicial se dissipa, o calor chega às paisagens e às pessoas. Enfim, a obra dessaturada terá pleno contraste, cor, nitidez. Contrariamente ao aspecto fatual das primeiras sequências, surgem elementos de fantasia, cada vez mais extravagantes: as plantas crescendo rapidamente, as roupas que caem do céu. Makoto praticamente se funde com a natureza (vide a cena de nudez), que lhe retribui tamanho apreço.

Em virtude do teor etéreo do projeto, as atuações se prestam à performance. Nenhum corpo ou fala nesta ilha corresponde aos princípios habituais de atuação. Representam corpos presentes, disponíveis, manifestando olhares de contemplação. Curiosamente, resta ao Japão, terra associada à fantasia no imaginário popular, a parcela mais naturalista da jornada, enquanto o Chile se reveste de mistérios e magias. A decisão de separar geograficamente a vida da morte (reservando a um país a vida, e ao outro, o pós-vida) também merece destaque.

O resultado pode soar hermético demais à maioria do público. No Bonito Cine Sur, os espectadores pouco habituados ao cinema autoral estranhavam as sequências, o ritmo, as analogias. Em tempo de aceleração e entretenimento, o cinema que exige uma participação ativa do espectador (convidado a decifrar seus significados e projetar as próprias interpretações) se prova exigente demais a quem busca alguma forma de escapismo inofensivo. Ruiz nunca facilita a tarefa ao espectador com frases explicativas ou recompensas emocionais fáceis rumo à conclusão, ainda que amarre todas as pontas soltas.

Por isso mesmo, propõe um recorte autoral interessante. Admira-se a chegada ao circuito de um cineasta jovem, de pretensões criativas evidentes, porém distantes de vaidades ou exibicionismos. Todos os recursos de som, fotografia e edição são coesos, dedicados a contar da melhor maneira esta viagem aos confins si próprio. É curioso se deparar com uma estética tão laica para discutir a espiritualidade, e uma abordagem tão plácida para o tema da morte.

Green Grass (2022)
7
Nota 7/10

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