Cuckoo (2024)

Criatura dos Alpes

título original (ano)
Cuckoo (2024)
país
Alemanha, EUA
gênero
Terror
duração
102 minutos
direção
Tilman Singer
elenco
Hunter Schafer, Dan Stevens, Jessica Henwick, Marton Csókás, Jan Bluthardt
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

O ano de 2024 traz ao cinema de horror uma nova criatura feminina, tão protetora quanto letal, e associada ao período de luto. Na esteira de projetos como A Maldição da Chorona (2019), Noites Brutais (2022) e Boogeyman: Seu Medo É Real (2023), Cuckoo (2024) extrapola as funções e os perigos da maternidade até os limites do monstruoso. Assim, traça algumas discussões interessantes de desenvolver — considerando, por exemplo, que estes filmes foram dirigidos por homens.

Como de costume, a protagonista é uma mulher, que enfrenta a entidade sobrenatural feminina em sua capacidade de cuidar de crianças, dar afeto e proteção. Gretchen (Hunter Schaefer) é uma jovem rebelde, em fase de luto pela perda da mãe. Obrigada a se mudar junto ao pai, à nova esposa dele e a meia-irmã para um chalé nos Alpes alemães, ela se sente estrangeira de todas as maneiras possíveis — desconhece a madrasta, a cidade, a língua. 

A atriz compõe esta personagem como se sofresse uma espécie de infância tardia, disputando atenção com a irmã pequena e se esforçando para ser notada, seja pela demonstração de carência afetiva, seja pelo enfrentamento ao sistema. Logo, ela se veste como uma pré-adolescente e finge desprezar o pai, por quem sente certa raiva — Gretchen o culpabiliza, de maneira mais ou menos consciente, pela perda da mãe. Ao seu ver, deixar os Estados Unidos equivale a deixar a lembrança materna. Talvez a atriz exagere na inadequação social, porém demonstra uma preocupação notável em respeitar a imensa fragilidade da heroína.

Assim que se afasta da companha de adultos, começa a se sentir perseguida por uma figura feminina mais velha, usando lenço no cabelo e óculos de sol. Esta criatura se comunica através de sons estridentes, provindos de dentro da floresta. Consegue, desta maneira, um efeito corpóreo, gutural: a dor do luto provoca ataques de epilepsia em mulheres da vizinhança. As personagens femininas principais somatizam os traumas de modo a torná-los visíveis ao espectador, e mais espetaculares ao cinema.

Cuckoo interessa mais enquanto drama do que fantasia. O diretor Tilman Singer investe sem meios-termos nesta mitologia própria, sem medo do ridículo ou do absurdo.

O diretor Tilman Singer investe sem meios-termos nesta mitologia própria, sem medo do ridículo ou do absurdo. Permite rapidamente que o monstro seja visto de perto, durante tempo considerável, enquanto a maioria dos filmes privilegia a revelação progressiva. Inventa a possibilidade de que os efeitos da adversária produzam a volta no tempo durante alguns segundos, caso em que as cenas de tensão se repetem para a vítima. Imagine os cenários e personagens literalmente tremendo, reverberando, expandindo, assim como se sentiriam os corpos das duas mulheres.

Neste caminho, muitas explicações são sumariamente ignoradas, ou deixadas pela metade. O cuco, animal que dá nome ao título, possui um papel crescente na narrativa, embora suas particularidades (o fato de colocar seus ovos no ninho alheio, para que outros cuidem) sejam mal justificadas na comparação com o caso de Gretchen. Na possível busca por evitar um final didático demais, o cineasta o deixa vago, repleto de pontas soltas ou ambíguas. A contextualização de poderes e modos de ação seria importante para uma história que pretende introduzir um universo de funcionamento distinto.

Em consequência, Cuckoo interessa mais enquanto drama do que fantasia. O relacionamento entre Gretchen e a irmãzinha evolui de modo inesperado e consistente, quando a heroína terá a oportunidade de desempenhar o papel simbólico de mãe, recebendo e devolvendo o afeto tão desejado desde o princípio. O corpo da adolescente será progressivamente cortado, fraturado, exaurido. Já a mente precisa resistir a perseguições, humilhações, abandonos e uma carga expressiva de gaslighting. No entanto, a possível sobrevivência da estrangeira dependerá justamente de vencer o controle masculino do pai real e de dois pais simbólicos (Dan Stevens e Jan Bluthardt), que prometem protegê-la, mas não o fazem.

Esteticamente, o resultado se destaca enquanto criação de clima, e pela capacidade de resgatar uma atmosfera camp, ou de exploitation, típica dos anos 1970. A maneira como corpos vibram, sangram e gritam lembra os clássicos que fundaram o terror moderno, também baseados no conceito da perseguição às mulheres “desviantes” das normais sociais. A trilha sonora retrô, as roupas, o isolamento dos Alpes e a conduta dos personagens nos afastam do típico individualismo de uma juventude conectada do século XXI. Singer se volta a aspectos universais deste grupo social.

Em contrapartida, o longa-metragem tampouco efetua um uso expressivo dos espaços, explorando pouco o hospital, o hotel e a nova casa da família. Estes cômodos em fase de apropriação pela família representariam um banquete ao cinema de horror. No entanto, o alemão prefere imagens banais da estrada na noite profunda, ou de um chalé filmado sempre pelo mesmo ângulo, à mesma distância. Faltaria investir na geografia do isolamento e da perda de referências para ilustrar com eficiência a sensação de não-pertencimento destas mulheres.

Na sala de cinema, o público ria às gargalhadas, em cenas que talvez não fossem previstas para este efeito — vide as sequências da flauta, do pacote no chão e do grito de Gretchen. Parte desta liberdade decorre da linguagem do horror, que se permite brincar com a lógica naturalista pelas vias do extremo distanciamento, decorrente do grotesco e da fantasia. Entretanto, o roteiro se aproxima perigosamente da aleatoriedade, das cenas desconexas ou injustificáveis, contrariando a própria lógica. O diretor não parece muito preocupado em testar os limites de seu jogo.

Alguns verão na identidade trans de Hunter Schaefer um aceno suplementar a “não se sentir normal”, interpretando Cuckoo enquanto metáfora LGBTQIA+. Esta seria uma extrapolação perigosa: embora a protagonista explore sua orientação sexual, ela interpreta uma garota cis, e sua identidade de gênero nunca é questionada ou explorada — nem aquela do monstro feminino que a espelha. O projeto de prazeres simples e estímulos assumidamente superficiais (os sustos, os homens que retornam à vida após sofrerem inúmeros golpes) tampouco deseja se prestar a uma analogia desta complexidade.

Resta um pequeno jogo de perseguições e uma surpresa final de contornos vagos, seguindo a fórmula tradicional da heroína desacreditada por todos, cujas dores são, no entanto, devidamente compartilhadas com o público — um clássico, pelo menos desde O Bebê de Rosemary. Cada vez mais, convém prestar atenção aos filmes endinheirados, de indústria, munidos de produção polida e bons atores, e dedicados a um horror trash, ou afeitos a deleites que, nos anos 1970, decorreriam do baixíssimo orçamento. Elementos que antes se justificavam tanto pela criatividade quanto pela falta de recursos hoje se tornam escolhas deliberadas (vide a construção do monstro), sustentando um aspecto de nostalgia em relação aos pavores analógicos de antigamente.

Cuckoo (2024)
6
Nota 6/10

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