Esta produção percorre um caminho curioso, do macro ao micro. O filme se abre com planos gerais de Bruxelas, com foco num prédio em construção. O edifício é admirado ao longe, enquanto árvores emolduram o enquadramento. Aos poucos, as novas imagens de aproximam do local, adentram a estrutura, revelam os corpos de operários de costas, ou com o rosto cortado pelo enquadramento. Somente neste momento, enxergamos as pessoas, e conhecemos algumas delas. Chegando ao plano de conjunto, mais humano, a imagem então se permite os primeiros close-ups, para investigar a seguir a natureza, o musgo, os microorganismos. A aventura se encerra com a descoberta de um mundo microscópico.
Este zoom-in no universo ocorre de maneira progressiva, calma, quase imperceptível. O diretor Bas Devos conduz a obra com a segurança de quem já trilhou estes rumos antes, e demonstra total domínio de coesão e coerência — seja de discurso, narrativa, estética. Nenhuma imagem destoa do conjunto, nenhum plano constitui mera vaidade de direção ou de fotografia. A montagem possui a serenidade rígida de um metrônomo, conferindo tempos equivalentes aos planos — aqui, a conduta não se acelera, nem se arrasta. Por trás da aparência de banalidade cotidiana, há um maquinário finamente regulado.
Tamanha maturidade representa um momento bem-vindo na carreira do cineasta, que já realizou obras maneiristas e interessadas no deslumbre da imagem pela imagem (Violeta, 2014). Com Hellhole e Ghost Tropic, começou a acalmar a pulsão febril das composições, em busca de uma conjunção mais adequada entre forma e conteúdo. Agora, atinge o equivalente a uma meditação audiovisual, um estágio onde o humano não se sobrepõe à natureza, nem a estética se sobrepõe ao humanismo da narrativa. Cada elemento possui seu valor, sua função e seu tempo.
Uma meditação audiovisual, um estágio onde o humano não se sobrepõe à natureza, nem a estética se sobrepõe ao humanismo da narrativa. Cada elemento possui seu valor, sua função e seu tempo.
O tempo se torna essencial na condução de um filme sem conflitos. O pedreiro Stefan (Stefan Gota) está no último dia de trabalho antes das férias, quando retorna à Romênia para visitar a família. Shuxiu (Liyo Gong) dá aulas de microbiologia na faculdade pela manhã, e ajuda a tia no restaurante chinês à noite. Ambos perambulam pelas ruas, absortos, rumo aos destinos estabelecidos. Não há qualquer senso de urgência, nem vontades contrárias à realização dos objetivos. O rapaz parte à sua viagem, encontra quem gostaria. A jovem faz suas pesquisas, conduz aulas sobre organismos inventados. O mundo persiste, inabalável.
A propósito de organismos fictícios, Here permite a intromissão gentil e discreta da fantasia. Se por um lado o naturalismo intenso conduz à observação da natureza, por outro lado, a contemplação desperta a criatividade e a imaginação. Entram em cena as sensações, percepções, e as confissões íntimas de cada um. Em mandarim, a brióloga confessa a aflição de um sonho no qual se esquecia da palavra das coisas. Ela se lembrava dos objetos e elementos em si, mas não tinha maneira de se referir a eles. Na Romênia, um conhecido narra a Stefan sua experiência com a anestesia geral para uma cirurgia. Para ele, o procedimento faz apagar o tempo. “Não é como dormir à noite”, sublinha.
Logo, o caráter fatual das primeiras imagens cede espaço ao universo sensível, sensual e letárgico de experimentações íntimas. Devos questiona em especial a noção de pertencimento, a partir de um homem estrangeiro e de uma mulher local, porém de ascendência oriental. Sentem-se acolhidos? O rapaz olha para a capital belga a partir de uma sacada elevada e diz: “Esta é a minha casa”, como se tentasse convencer a si mesmo. Descontente, imagina que talvez fique em seu país por mais tempo do que previsto. Não há crises, apenas um progressivo e pacífico esclarecimento. Tal qual o movimento da ciência, o filme procura compreender melhor aquilo que nos cerca, e como funciona, numa fase anterior aos julgamentos de qualquer espécie. Raramente a experiência de ser estrangeiro ou imigrante recebeu um tratamento tão amoroso e filosófico no cinema.
Além disso, o aspecto singelo nunca soa como humildade forçada, apenas um olhar descompromissado, desafetado à sociedade. Em meio à seleção repleta de filmes “malvados” no Festival de Berlim, dispostos a apontar o dedo a monstros e vilões da contemporaneidade (Manodrome, Disco Boy), o drama belga representa um respiro. Quantos filmes são movidos pela andança de um rapaz que cozinha uma sopa caseira, e leva um potinho de alimento para cada amigo que encontra pela jornada? Devos ainda possui a atenção de registrar as cascas de comida sobre a tábua, e a seleção dos ingredientes.
Talvez o cineasta tenha se aproximado de uma forma oriental de enxergar o mundo, próxima da experiência essencialista japonesa — o cinema de Naomi Kawase não está muito longe. Desaparecem a noções de performance e finalidade, assim como as instruções de manuais de roteiro e a preocupação com a recompensa emocional do espectador. A confecção de uma obra tão simples, e tão complexa, constitui uma raridade no circuito de festivais. Teria sido interessante acompanhar as rodadas de negócios e discussões com produtores, quando o diretor e roteirista apresentou a intenção de fazer uma cena de dez minutos focada na importância dos musgos.
Resta, escondida na floresta, uma forma de assombração apenas aludida — as sementes misteriosas, a planta fluorescente, o cadáver jogado na terra, adubando o solo para a chegada de novas plantas. Cada um destes elementos poderia dar origem a um filme em si próprio, porém Devos não tem tempo para desenvolver uma fantasia: Stefan precisa entregar seu próximo pote de sopa. A noção de prioridades fascina neste longa-metragem: a exemplo do plano das cascas de legumes, o diretor parece ter trabalhado essencialmente com um material que, para outros criadores, teria sido descartado na mesa de montagem.
A equipe o acompanha num ritmo fluido, em especial a direção de fotografia, que trabalha de maneira preciosa as baixas luzes. Já a direção de som reforça o tom das falas e o valor do silêncio em cenários praticamente vazios (o restaurante, o refeitório com a irmã enfermeira, o laboratório de biologia). O filme não precisa calar o ruidoso mundo ao redor para destacar a sensação de solidão ou de pertencimento da dupla central: ele busca estes espaços naturalmente vazios, a exemplo de um jardim comunal prestes a fechar as portas, ou de uma construção sem os muros erguidos. Apesar da aparência de trivialidade, existe um universo rico e vibrante nestes organismos silenciosos, sejam eles musgos, prédios, pedreiros ou biólogas.