Here (2023)

O vazio é cheio de vida

título
Here (2023)
país
Bélgica
gênero
Drama
duração
82 minutos
direção
Bas Devos
elenco
Stefan Gota, Liyo Gong
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Esta produção percorre um caminho curioso, do macro ao micro. O filme se abre com planos gerais de Bruxelas, com foco num prédio em construção. O edifício é admirado ao longe, enquanto árvores emolduram o enquadramento. Aos poucos, as novas imagens de aproximam do local, adentram a estrutura, revelam os corpos de operários de costas, ou com o rosto cortado pelo enquadramento. Somente neste momento, enxergamos as pessoas, e conhecemos algumas delas. Chegando ao plano de conjunto, mais humano, a imagem então se permite os primeiros close-ups, para investigar a seguir a natureza, o musgo, os microorganismos. A aventura se encerra com a descoberta de um mundo microscópico.

Este zoom-in no universo ocorre de maneira progressiva, calma, quase imperceptível. O diretor Bas Devos conduz a obra com a segurança de quem já trilhou estes rumos antes, e demonstra total domínio de coesão e coerência — seja de discurso, narrativa, estética. Nenhuma imagem destoa do conjunto, nenhum plano constitui mera vaidade de direção ou de fotografia. A montagem possui a serenidade rígida de um metrônomo, conferindo tempos equivalentes aos planos — aqui, a conduta não se acelera, nem se arrasta. Por trás da aparência de banalidade cotidiana, há um maquinário finamente regulado.

Tamanha maturidade representa um momento bem-vindo na carreira do cineasta, que já realizou obras maneiristas e interessadas no deslumbre da imagem pela imagem (Violeta, 2014). Com Hellhole e Ghost Tropic, começou a acalmar a pulsão febril das composições, em busca de uma conjunção mais adequada entre forma e conteúdo. Agora, atinge o equivalente a uma meditação audiovisual, um estágio onde o humano não se sobrepõe à natureza, nem a estética se sobrepõe ao humanismo da narrativa. Cada elemento possui seu valor, sua função e seu tempo.

Uma meditação audiovisual, um estágio onde o humano não se sobrepõe à natureza, nem a estética se sobrepõe ao humanismo da narrativa. Cada elemento possui seu valor, sua função e seu tempo.

O tempo se torna essencial na condução de um filme sem conflitos. O pedreiro Stefan (Stefan Gota) está no último dia de trabalho antes das férias, quando retorna à Romênia para visitar a família. Shuxiu (Liyo Gong) dá aulas de microbiologia na faculdade pela manhã, e ajuda a tia no restaurante chinês à noite. Ambos perambulam pelas ruas, absortos, rumo aos destinos estabelecidos. Não há qualquer senso de urgência, nem vontades contrárias à realização dos objetivos. O rapaz parte à sua viagem, encontra quem gostaria. A jovem faz suas pesquisas, conduz aulas sobre organismos inventados. O mundo persiste, inabalável.

A propósito de organismos fictícios, Here permite a intromissão gentil e discreta da fantasia. Se por um lado o naturalismo intenso conduz à observação da natureza, por outro lado, a contemplação desperta a criatividade e a imaginação. Entram em cena as sensações, percepções, e as confissões íntimas de cada um. Em mandarim, a brióloga confessa a aflição de um sonho no qual se esquecia da palavra das coisas. Ela se lembrava dos objetos e elementos em si, mas não tinha maneira de se referir a eles. Na Romênia, um conhecido narra a Stefan sua experiência com a anestesia geral para uma cirurgia. Para ele, o procedimento faz apagar o tempo. “Não é como dormir à noite”, sublinha.

Logo, o caráter fatual das primeiras imagens cede espaço ao universo sensível, sensual e letárgico de experimentações íntimas. Devos questiona em especial a noção de pertencimento, a partir de um homem estrangeiro e de uma mulher local, porém de ascendência oriental. Sentem-se acolhidos? O rapaz olha para a capital belga a partir de uma sacada elevada e diz: “Esta é a minha casa”, como se tentasse convencer a si mesmo. Descontente, imagina que talvez fique em seu país por mais tempo do que previsto. Não há crises, apenas um progressivo e pacífico esclarecimento. Tal qual o movimento da ciência, o filme procura compreender melhor aquilo que nos cerca, e como funciona, numa fase anterior aos julgamentos de qualquer espécie. Raramente a experiência de ser estrangeiro ou imigrante recebeu um tratamento tão amoroso e filosófico no cinema.

Além disso, o aspecto singelo nunca soa como humildade forçada, apenas um olhar descompromissado, desafetado à sociedade. Em meio à seleção repleta de filmes “malvados” no Festival de Berlim, dispostos a apontar o dedo a monstros e vilões da contemporaneidade (Manodrome, Disco Boy), o drama belga representa um respiro. Quantos filmes são movidos pela andança de um rapaz que cozinha uma sopa caseira, e leva um potinho de alimento para cada amigo que encontra pela jornada? Devos ainda possui a atenção de registrar as cascas de comida sobre a tábua, e a seleção dos ingredientes.

Talvez o cineasta tenha se aproximado de uma forma oriental de enxergar o mundo, próxima da experiência essencialista japonesa — o cinema de Naomi Kawase não está muito longe. Desaparecem a noções de performance e finalidade, assim como as instruções de manuais de roteiro e a preocupação com a recompensa emocional do espectador. A confecção de uma obra tão simples, e tão complexa, constitui uma raridade no circuito de festivais. Teria sido interessante acompanhar as rodadas de negócios e discussões com produtores, quando o diretor e roteirista apresentou a intenção de fazer uma cena de dez minutos focada na importância dos musgos.

Resta, escondida na floresta, uma forma de assombração apenas aludida — as sementes misteriosas, a planta fluorescente, o cadáver jogado na terra, adubando o solo para a chegada de novas plantas. Cada um destes elementos poderia dar origem a um filme em si próprio, porém Devos não tem tempo para desenvolver uma fantasia: Stefan precisa entregar seu próximo pote de sopa. A noção de prioridades fascina neste longa-metragem: a exemplo do plano das cascas de legumes, o diretor parece ter trabalhado essencialmente com um material que, para outros criadores, teria sido descartado na mesa de montagem. 

A equipe o acompanha num ritmo fluido, em especial a direção de fotografia, que trabalha de maneira preciosa as baixas luzes. Já a direção de som reforça o tom das falas e o valor do silêncio em cenários praticamente vazios (o restaurante, o refeitório com a irmã enfermeira, o laboratório de biologia). O filme não precisa calar o ruidoso mundo ao redor para destacar a sensação de solidão ou de pertencimento da dupla central: ele busca estes espaços naturalmente vazios, a exemplo de um jardim comunal prestes a fechar as portas, ou de uma construção sem os muros erguidos. Apesar da aparência de trivialidade, existe um universo rico e vibrante nestes organismos silenciosos, sejam eles musgos, prédios, pedreiros ou biólogas.

Here (2023)
9
Nota 9/10

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