Los Capítulos Perdidos (2024)

Museologia familiar

título original (ano)
Los Capitulos Perdidos (2024)
país
Venezuela, EUA
gênero
Drama
duração
67 minutos
direção
Lorena Alvarado
elenco
Ena Alvarado, Ignacio Alvarado, Adela Rodriguez
visto em
77º Festival de Locarno (2024)

O venezuelano Los Capítulos Perdidos parte de uma economia narrativa excepcional. Existem pouquíssimos personagens, cenários e ações, ao longo de sucintos 67 minutos. Os raros dilemas em tela se sucedem como um passeio corriqueiro pela dinâmica de uma família: a filha lê, digita textos ao computador, ajuda a avó a memorizar um poema, organiza livros na estante junto ao pai, dono de uma livraria. Compreende-se com rapidez que a diretora Lorena Alvarado não procura um dia especial na vida destas pessoas, nem um instante transformador na comunidade em questão. Pelo contrário, valoriza a banalidade dos dias que passam.

Para isso, recorre a planos fixos e distanciados, que valorizam os espaços domésticos enquanto conferem aos protagonistas importância idêntica àquelas da biblioteca da casa ou das plantas no jardim. Alguns espectadores podem considerar tal abordagem fria, impessoal — ninguém chora, grita, ri nem goza em meio às interações plácidas de três gerações reunidas. A avó se encontra em fase inicial de perda de memória, embora ainda não provoque crises maiores ao filho adulto; este precisa fechar a livraria principal devido à situação econômica na Venezuela, porém vive confortavelmente com a proposta de um museu dedicado à literatura nacional. A filha visita a ambos quando pode, permanecendo o tempo desejado. Não possui urgência nem planos específicos para o retorno.

A cineasta utiliza o audiovisual para efetuar uma homenagem singela à literatura e à capacidade dos livros impressos em transmitir uma emoção, deixar um legado. O título faz referência à procura de Ena (Ena Alvarado) pelo suposto romance aludido num cartão postal, em paralelo à insistência em fazer a avó memorizar seu poema preferido. Entre avó, pai e filha distanciados (o amor nunca se traduz em trocas acaloradas de afeto), os livros efetuam a ponte, ao ponto de se transformarem na única forma realmente valiosa de herança.

Poucos autores se consagram com tamanha consistência à magia do cotidiano, evitando a armadilha fácil de embelezá-lo. Para o bem ou para o mal, o projeto se desenvolve apesar do espectador, não para ele.

Felizmente, o drama evita a idealização de uma literatura transformadora ou salvadora. Esqueça as cenas de pessoas cheirando as páginas dos livros, ou reencontrando cartas da infância perdidas entre as páginas. A obra prefere um registro mais simples e palpável: filma os livros em quantidade, já velhos e amarelados, empilhados em caixas e organizados nas estantes por ordem alfabética. Adota-se uma postura pragmática, fugindo à romantização: o trabalho da arte e com arte converte-se num ofício duro e repetitivo, ao invés de um rompante de talento ou de uma necessidade pessoal do escritor. 

Os criadores apoiam-se numa estética afiliada ao cinema documental. A opção pela textura digital de qualidade modesta e a observação em longos planos favorecem o sentimento de interações improvisadas ou, pelo menos, munidas de grande liberdade a partir de um estímulo da direção. O fato de Ena Alvarado e Ignacio Alvarado possuírem o sobrenome da cineasta também sugere uma obra realizada em família, com alto grau de intimidade e naturalidade. Atinge-se evidente verossimilhança nas trocas entre pai e filha, justamente porque o filme não se esforça demais para fazer com que pareçam reais.

Por outro lado, o estetismo dos planos fixos e da trilha sonora preciosista aproximam o resultado de uma fábula doce, vizinha do realismo fantástico. É curioso como cenas triviais se associam à trilha sonora de harpas e xilofones, cuja sonoridade rara remete à fantasia e ao mágico. O plano destacado acima, com a protagonista posicionada no centro exato de um círculo na parede, simboliza este despojamento controlado: é óbvio que Ena foi posicionada no centímetro exato desejado pela cineasta, embora a escolha esteja disfarçada pela caminhada comum da heroína diante da parede colorida. 

O resultado encanta pela compreensão madura de seu alcance: trata-se de uma obra pequena, perfeitamente ciente de onde pode chegar com tal proposta. O filme se resolve bem no tempo e nas ações escolhidos. A montagem, tão contemplativa quanto econômica, não estica nenhuma cena, nem desperta a impressão de sequências arrastadas ou meramente funcionais. Os três atores possuem prestações de naturalidade equivalente, e nenhuma opção de luz, arte ou edição chama atenção a si própria. Trata-se de uma organicidade rara no cinema independente.

Por outro lado, Los Capítulos Perdidos corre o risco de soar hermético, ou mesmo blasé para uma parte considerável do público, em busca de certa forma de identificação ou recompensa emocional. Lorena Alvarado não investe em nenhum recurso facilitador para os sentimentos, nem para catalisar as interações desenvolvidas. Ela encerra a narrativa como quem fecha um livro pela metade, precisando resolver, por ora, outras pendências. Sua obra se foca num fragmento de vida de aparência aleatória, como se pudesse ter escolhido quaisquer semanas na vida do trio central, filmando-as com igual dedicação. 

Ora, poucos autores se consagram com tamanha consistência à magia do cotidiano, evitando a armadilha fácil de embelezá-lo para o olhar alheio. Para o bem ou para o mal, o projeto se desenvolve apesar do espectador, não para ele. Recebemos a oportunidade furtiva de espiar a rotina comum de pessoas comuns, cujo percurso começa e se encerra sem transformações dignas deste nome. Existe uma ousadia notável na recusa de espetacularizar o banal, ou de promover alguma forma de clímax e desfecho. Pode-se falar em um drama discreta e cerebralmente provocador. 

Los Capítulos Perdidos (2024)
7
Nota 7/10

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