O filme se inicia de maneira interessante. O foco se encontra num lar adotivo para garotas, onde Sam precisa partir por ter atingido a maioridade. Ela nunca foi adotada, e agora, oficialmente adulta e sem família, precisa encontrar um jeito de viver sozinha pela primeira vez. A animação possui ferramentas potentes para representar os desafios cotidianos, graças às metáforas e liberdades inerentes à linguagem do desenho. Dos traços físicos exagerados aos acontecimentos improváveis, o mundo de magias pode ajudar a reflexão acerca do real.
No caso da protagonista, sua situação se traduz na existência do azar. A vida inteira, a menina viveu cercada por equipamentos que se quebram, potes que caem no chão, bicicletas com pneus furados. É claro, à primeira vista, que este elemento serve a ilustrar as adversidades familiares: ao invés de objetos quebrados, a menina viveu cercada de solidão e desamparo, transmitidos nestas trapalhadas físicas e explícitas. O azar nada mais seria do que uma concretização do estado psíquico da jovem.
O cinema infantil tem elaborado formas complexas de dialogar com a insegurança infantil (DivertidaMente), o enfrentamento das normas sociais (A Fera do Mar), o questionamento das tradições e dos lugares-comuns (Klaus). A premissa de Luck possui forte potencial para se unir ao grupo de obras em que a magia funciona como estranhamento do mundo natural, ou seja, uma possibilidade de dar um passo atrás e observar criticamente alguns mecanismos sociais que nos pareciam naturais.
Ora, conforme a narrativa avança, o foco se desvia de Sam, ou mesmo de Bob, o gato preto sortudo que ela encontra pelo caminho. O filme inventa um cenário distante onde a sorte e o azar são produzidos para o mundo inteiro. Há máquinas, traquitanas, chefias e departamentos, em funcionamento análogo ao de uma gigantesca empresa. Sorte e azar deixam de ser uma impressão, uma percepção íntima, para se converterem em fatos: eles constituem produtos desenvolvidos numa usina qualquer.
A conclusão defende a controversa tese de que o azar seria benéfico ao equilíbrio do mundo, e que pessoas em contextos de dificuldade deveriam se sentir felizes porque os obstáculos lhes trouxeram experiências valiosas.
Aos poucos, o roteiro começa a sair dos trilhos na tentativa de explicar a materialidade destes objetos. A sorte depende de uma moeda, mas as moedas são construídas a partir de um pó especial, que depende, por sua vez, de uma pedra fundamental. Mas as pedras podem ser forjadas; o pó de azar no departamento da sorte não surte efeitos duradouros na positividade do local, assim como poeiras de sorte no mundo do azar jamais transformam o funcionamento deste setor.
O segundo terço da aventura se dedica quase exclusivamente à explicação das traquitanas e de sua distribuição pela Terra. É curioso que os estúdios não tenham simplificado, ou encurtado, as longas tiradas complicadoras. Mencionam-se dutos de condução, elevadores que conectam mundos, pisos de gravidades distintas, aparelhos sugadores de moedas, polícias limpadoras de negatividade, dragões que sentem cheiro de azar e outros dispositivos que, no final, apenas distraem a jornada de seu propósito.
Algumas perseguições são incluídas no intuito de agilizar os segmentos, porém com efeito limitado: a humana Sam, muito mais alta do que os colegas gatos e elfos, disfarça-se de funcionário local sem despertar suspeitas. Nota-se que Sam possui objetivos limitados, e basicamente se deixa levar pelo turbilhão alheio. Ela busca uma moeda da sorte para a colega de abrigo, no intuito de evitar que a menina sofra um destino solitário equivalente ao seu. Ora, uma vez imersa na fantástica fábrica de azares, os pensamentos pela amiga se tornam raros.
O gato Bob contribui a explicar esta sensação indefinida quanto ao discurso de Luck. O gato deve sua sorte à moedinha que porta no pescoço, no entanto, uma vez o objeto desaparecido, não manifesta nem sorte, nem azar. Isso poderia significar que, na verdade, os amuletos importam pouco, e os destinos se fazem pelos próprios indivíduos. Ora, o longa-metragem evita essa interpretação, sustentando na reta final que as noções de azar e sorte existem por si próprias, sendo atribuídas de modo aleatório por forças sobrenaturais.
Pior ainda, a conclusão defende a controversa tese de que o azar seria benéfico ao equilíbrio do mundo, e que pessoas em contextos de dificuldade deveriam se sentir felizes porque os obstáculos lhes trouxeram experiências valiosas. Os personagens pobres e órfãos deveriam, portanto, agradecer este destino inóspito, que lhe seria atribuído pelo cosmos. A situação de Sam não seria decorrente de qualquer responsabilidade social, governamental ou política, dependendo apenas do destino e de si mesma.
O conformismo e a passividade face à desigualdade social provoca uma impressão amarga em Luck. Podendo suspender o azar e distribuir sorte em doses iguais ao mundo inteiro, os personagens mágicos hesitam. Ora, porque não ajudariam a todos em proporções idênticas? Que lógica existe em ajudar uns, e prejudicar outros? A fábula se conclui pela percepção de que distribuições desproporcionais de oportunidades tornam a vida mais divertida, mais alegre, mais variada. Uma defesa antirrevolucionária em sua essência.
É claro que tais questionamentos se diluem na estética colorida, nos personagens de grandes olhos redondos, na trilha sonora agradável, nas cores verdes da sorte, ou rosas do azar. Enquanto isso, a paixão de um dragão fêmea por um quadrúpede masculino já tinha sido vista em Shrek; estas máquinas operadas por criaturas fantásticas remetem excessivamente a Monstros S.A., e a incursão de Sam em sua intimidade remete a Soul e DivertidaMente. O roteiro certamente não inova neste sentido.
Em contrapartida, a animação dirigida por Peggy Holmes oferece o esmero esperado de um grande estúdio de animação, em termos de construção de vozes, personagens, cores, luzes e aventura. Há controle de produção suficiente para colocar Luck entre os projetos grandes. No entanto, perto de obras ousadas em termos sociais ou psicológicos, o texto encontra dificuldades em se impor. Ao público infantil e familiar, isso talvez importe pouco. Há criaturas fofas e atrapalhadas, cenas agradáveis e quiproquós inconsequentes o suficiente para disfarçar elementos questionáveis, mergulhados na estética aprazível e conhecida.
PS: Assista à entrevista com Gregório Duvivier, dublador brasileiro do gato Bob: