Luck (2022)

Aceite seu azar

título original (ano)
Luck (2022)
país
Espanha, EUA
gênero
Animação, Comédia, Fantasia
duração
105 minutos
direção
Peggy Holmes
vozes originais
Eva Noblezada, Simon Pegg, Whoopi Goldberg, Jane Fonda, Lil Rel Howery, Flula Borg, John Ratzenberger, Colin O’Donoghue, Maurice J. Irvin
visto em
Apple TV+

O filme se inicia de maneira interessante. O foco se encontra num lar adotivo para garotas, onde Sam precisa partir por ter atingido a maioridade. Ela nunca foi adotada, e agora, oficialmente adulta e sem família, precisa encontrar um jeito de viver sozinha pela primeira vez. A animação possui ferramentas potentes para representar os desafios cotidianos, graças às metáforas e liberdades inerentes à linguagem do desenho. Dos traços físicos exagerados aos acontecimentos improváveis, o mundo de magias pode ajudar a reflexão acerca do real.

No caso da protagonista, sua situação se traduz na existência do azar. A vida inteira, a menina viveu cercada por equipamentos que se quebram, potes que caem no chão, bicicletas com pneus furados. É claro, à primeira vista, que este elemento serve a ilustrar as adversidades familiares: ao invés de objetos quebrados, a menina viveu cercada de solidão e desamparo, transmitidos nestas trapalhadas físicas e explícitas. O azar nada mais seria do que uma concretização do estado psíquico da jovem.

O cinema infantil tem elaborado formas complexas de dialogar com a insegurança infantil (DivertidaMente), o enfrentamento das normas sociais (A Fera do Mar), o questionamento das tradições e dos lugares-comuns (Klaus). A premissa de Luck possui forte potencial para se unir ao grupo de obras em que a magia funciona como estranhamento do mundo natural, ou seja, uma possibilidade de dar um passo atrás e observar criticamente alguns mecanismos sociais que nos pareciam naturais.

Ora, conforme a narrativa avança, o foco se desvia de Sam, ou mesmo de Bob, o gato preto sortudo que ela encontra pelo caminho. O filme inventa um cenário distante onde a sorte e o azar são produzidos para o mundo inteiro. Há máquinas, traquitanas, chefias e departamentos, em funcionamento análogo ao de uma gigantesca empresa. Sorte e azar deixam de ser uma impressão, uma percepção íntima, para se converterem em fatos: eles constituem produtos desenvolvidos numa usina qualquer.

A conclusão defende a controversa tese de que o azar seria benéfico ao equilíbrio do mundo, e que pessoas em contextos de dificuldade deveriam se sentir felizes porque os obstáculos lhes trouxeram experiências valiosas.

Aos poucos, o roteiro começa a sair dos trilhos na tentativa de explicar a materialidade destes objetos. A sorte depende de uma moeda, mas as moedas são construídas a partir de um pó especial, que depende, por sua vez, de uma pedra fundamental. Mas as pedras podem ser forjadas; o pó de azar no departamento da sorte não surte efeitos duradouros na positividade do local, assim como poeiras de sorte no mundo do azar jamais transformam o funcionamento deste setor. 

O segundo terço da aventura se dedica quase exclusivamente à explicação das traquitanas e de sua distribuição pela Terra. É curioso que os estúdios não tenham simplificado, ou encurtado, as longas tiradas complicadoras. Mencionam-se dutos de condução, elevadores que conectam mundos, pisos de gravidades distintas, aparelhos sugadores de moedas, polícias limpadoras de negatividade, dragões que sentem cheiro de azar e outros dispositivos que, no final, apenas distraem a jornada de seu propósito. 

Algumas perseguições são incluídas no intuito de agilizar os segmentos, porém com efeito limitado: a humana Sam, muito mais alta do que os colegas gatos e elfos, disfarça-se de funcionário local sem despertar suspeitas. Nota-se que Sam possui objetivos limitados, e basicamente se deixa levar pelo turbilhão alheio. Ela busca uma moeda da sorte para a colega de abrigo, no intuito de evitar que a menina sofra um destino solitário equivalente ao seu. Ora, uma vez imersa na fantástica fábrica de azares, os pensamentos pela amiga se tornam raros.

O gato Bob contribui a explicar esta sensação indefinida quanto ao discurso de Luck. O gato deve sua sorte à moedinha que porta no pescoço, no entanto, uma vez o objeto desaparecido, não manifesta nem sorte, nem azar. Isso poderia significar que, na verdade, os amuletos importam pouco, e os destinos se fazem pelos próprios indivíduos. Ora, o longa-metragem evita essa interpretação, sustentando na reta final que as noções de azar e sorte existem por si próprias, sendo atribuídas de modo aleatório por forças sobrenaturais.

Pior ainda, a conclusão defende a controversa tese de que o azar seria benéfico ao equilíbrio do mundo, e que pessoas em contextos de dificuldade deveriam se sentir felizes porque os obstáculos lhes trouxeram experiências valiosas. Os personagens pobres e órfãos deveriam, portanto, agradecer este destino inóspito, que lhe seria atribuído pelo cosmos. A situação de Sam não seria decorrente de qualquer responsabilidade social, governamental ou política, dependendo apenas do destino e de si mesma. 

O conformismo e a passividade face à desigualdade social provoca uma impressão amarga em Luck. Podendo suspender o azar e distribuir sorte em doses iguais ao mundo inteiro, os personagens mágicos hesitam. Ora, porque não ajudariam a todos em proporções idênticas? Que lógica existe em ajudar uns, e prejudicar outros? A fábula se conclui pela percepção de que distribuições desproporcionais de oportunidades tornam a vida mais divertida, mais alegre, mais variada. Uma defesa antirrevolucionária em sua essência.

É claro que tais questionamentos se diluem na estética colorida, nos personagens de grandes olhos redondos, na trilha sonora agradável, nas cores verdes da sorte, ou rosas do azar. Enquanto isso, a paixão de um dragão fêmea por um quadrúpede masculino já tinha sido vista em Shrek; estas máquinas operadas por criaturas fantásticas remetem excessivamente a Monstros S.A., e a incursão de Sam em sua intimidade remete a Soul e DivertidaMente. O roteiro certamente não inova neste sentido.

Em contrapartida, a animação dirigida por Peggy Holmes oferece o esmero esperado de um grande estúdio de animação, em termos de construção de vozes, personagens, cores, luzes e aventura. Há controle de produção suficiente para colocar Luck entre os projetos grandes. No entanto, perto de obras ousadas em termos sociais ou psicológicos, o texto encontra dificuldades em se impor. Ao público infantil e familiar, isso talvez importe pouco. Há criaturas fofas e atrapalhadas, cenas agradáveis e quiproquós inconsequentes o suficiente para disfarçar elementos questionáveis, mergulhados na estética aprazível e conhecida. 

PS: Assista à entrevista com Gregório Duvivier, dublador brasileiro do gato Bob:

Luck (2022)
5
Nota 5/10

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