A Fera do Mar (2022)

A guerra para crianças

título original (ano)
The Sea Beast (2022)
país
EUA
gênero
Animação, Fantasia, Infantil, Aventura
duração
119 minutos
direção
Chris Williams
vozes originais
Zaris-Angel Hator, Karl Urban, Jared Harris, Dan Stevens, Jim Carter, Marianne Jean-Baptiste, Kathy Burke, Max Mittelman, Dion MacKichan, David S. Lee, Mark Rhino Smith
visto em
Netflix

Por um lado, existem as feras do mar. Elas são gigantescas, ferozes, destruindo navios e matando diversos marinheiros. Às vezes, lutam entre sim. Por outro lado, existem os caçadores, que se especializam há gerações em combater estes animais e preservar a paz nos reinos vizinhos. Estes homens acordam e dormem com o sentimento permanente de vingança. Como começou este combate? Não se sabe. Mas sempre foi assim. Eles nos atacam, então nos defendemos, revidamos, até o ataque seguinte. Os protagonistas deste filme dedicaram suas vidas inteiras a combater o inimigo.

A Fera do Mar representa uma tentativa de explicar a guerra às crianças. Troque bichos aquáticos e marinheiros por Eixo e Aliados, por Rússia e Ucrânia, por Tutsi e Hutu, por Israel e Palestina, por qualquer outro enfrentamento fratricida que marcou a História. Mata-se porque as mortes vêm acontecendo, e o outro lado tem destruído o nosso. “Você está se voltando contra seu próprio povo”, alega o capitão Crow (Jared Harris) a um companheiro que se recusa a lançar o arpão contra os invasores. O aspecto moral e moralista desempenha um papel central na manutenção do ódio.

A mensagem pacifista tão importante quanto vaga poderia constituir o único atrativo da animação norte-americana, porém os criadores insistem em comprovar sua tese com certo estrondo. A narrativa se inicia com uma sequência digna de um filme de horror, marcada pela noite, a violenta aparição das criaturas, e o impacto profundo do garotinho em cena. O diretor Chris Williams (de Moana – Um Mar de Aventuras e Operação Big Hero 6) mergulha nas raízes do cinema de gênero para oferecer algo próximo de um terror infantil.

Aliás, as batalhas contra as gigantescas criaturas são construídas com furor e esmero técnico excepcionais. O filme se delicia com as proporções imensas dos animais em relação aos humanos, além dos planos angulados de baixo para cima de modo a engrandecer os adversários. O trabalho de som e luzes embala cada irrupção dos animais num teor épico repleto de perigo e envolvimento emocional. Em diversas sequências, a aparição dos animais relembra o ataque de Godzilla às cidades japonesas.

A Netflix se mostra capaz de rivalizar com os maiores estúdios da indústria. Em contrapartida, parece ter imposto regras para controlar a liberdade do resultado.

O reforço das sensações serve primeiro para justificar a motivação humana para a guerra, apoiando-se no ponto de vista de Crow e do caçador Jacob Holland (Karl Urban), e segundo, para reforçar o heroísmo da garotinha Maisie (Zaris-Angel Hator) ao questionar um sistema milenar. Como de costume, ela está diretamente envolvida nesta batalha, por ter perdido os pais num ataque das criaturas marinhas. O cinema não é capaz de conceber um protagonista de animação que não seja órfão, nem se envolva numa disputa política sem ter sido pessoalmente afetado por ela?

De fato, conforme a aventura avança, ela se domestica. A Netflix se mostra capaz de rivalizar com Disney, DreamWorks e outros estúdios líderes a indústria pelo aporte financeiro e pela capacidade de trazer à sua casa os melhores animadores do momento. Em contrapartida, parece ter imposto regras para controlar a liberdade do resultado e aumentar seu alcance junto ao público familiar. Cada vez que a trama impressiona pela ousadia, ela dá um passo atrás e revela uma série de clichês do gênero.

Assim, num primeiro momento, impressiona a força da garotinha negra, situada numa jornada onde sua raça jamais se torna motor de conflito. A tripulação repleta de personagens andróginos e multiétnicos aponta à compreensão crescente dos executivos a respeito da importância da diversidade nas obras. Exceto pela menina, em contrapartida, nenhum destes marujos asiáticos ou de países distintos ganha a mínima complexidade psicológica, ocupando o fundo das imagens. Ainda resta um caminho a percorrer.

A seguir, no entanto, começam a entrar os lugares-comuns. Maisie encontra um bichinho de aparência alienígena, azul fluorescente, que ajuda a clarear a noite com sua luz natural. A língua para fora da boca remete a um cachorro, ainda que a aparência singular permite identificar em Blue a uma origem extraterrestre. Este é o equivalente do galo em Moana, de Stitch em Lilo & Stich, de Sven em Frozen: Uma Aventura Congelante, do Alebrije em Viva: A Vida É uma Festa. Impõe-se a necessidade do sidekick, sem real função narrativa neste caso, porém capaz de cativar crianças, vender bonecos, mochilas, presentes e bichos de pelúcia.

Junto do filhote batizado de Blue, começam a surgir bruxas de cabelos bagunçados, alertando os homens quanto à necessidade de temer por aquilo que desejam; livros para nos lembrar da importância de questionar os fatos e registrar a História; frases explícitas para garantir a compreensão da mensagem ecológica e do discurso antibelicista. “Eu não sei como a guerra começou. Talvez só importe como ela termina”. O grau de elaboração intelectual de Maisie certamente não corresponde àquele de uma criança verossímil.

Entretanto, ela fornece o discurso engrandecedor ao som de orquestra, no clímax desta aventura, além de apontar a uma nova geração mais tolerante e sugerir tempos de aceitação pela frente. A Fera do Mar constitui uma fábula da revolução social, impecável em sua finalidade, apesar de problemática nos caminhos rumo a este objetivo. Os criadores estimam que reinos podem cair e batalhas se encerrarão a partir da boa vontade e do amor de alguns poucos indivíduos. O cinema americano possui impressionante dificuldade de conceber transformações coletivas partindo de forças coletivos: é preciso enaltecer a figura do herói visionário.

Ressalvas à parte, o resultado se sobressai pelo domínio técnico e a violência, em paralelo aos duelos humanos incomuns em produções infantis mais assépticas. A disputa shakespeariana entre dois homens, criados como pai e filho, assim como o laço momentâneo entre duas mulheres negras, de posições políticas opostas, permitem enxergar uma complexidade ímpar para este formato. O longa-metragem evita o humor fácil e paspalhão, enquanto faz uso comedido das músicas para manipulação emocional. Existe um grau de sofisticação nesta animação que desperta curiosidade quanto às próximas produções da Netflix neste segmento.

A Fera do Mar (2022)
7
Nota 7/10

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