Mães Paralelas (2021) vai muito além da singela sinopse de trabalho divulgada pelos produtores: “A história de duas mães que dão à luz no mesmo dia”. A simultaneidade interessa ao diretor Pedro Almodóvar somente enquanto traço de um destino, ou uma forma de sublinhar os paralelos mencionados no título. O autor privilegia a capacidade destas mulheres em se completarem, ao invés de se repetirem: Janis (Penélope Cruz) é uma mãe de quase 40 anos, enquanto Ana (Milena Smit) tem o filho durante a adolescência. O primeiro bebê deriva de um relacionamento carinhoso, ainda que sem compromissos de matrimônio, enquanto o segundo decorre de um ato de violência. O primeiro surge num contexto desprovido de laços familiares; já o segundo se insere numa família negligente e repressora.
Em especial, Janis representa uma mulher voltada ao registro de fatos e do passado: esta fotógrafa habituada a trabalhar em película e em digital já viajou pelo mundo inteiro a trabalho, e hoje se consagra ao resgate dos restos mortais do pai desconhecido, uma vítima do franquismo. Inversamente à mulher que representa a memória, a outra se insere numa pós-modernidade voltada ao esquecimento: Ana recalca a agressão de que foi vítima, e desconhece os traumas profundos vividos pela Espanha durante a ditadura. Caberá à primeira ensinar à segunda o que realmente ocorreu neste local, e manter viva a lembrança histórica.
Assim, o principal laço de maternidade deste drama não se encontra na dupla com seus bebês, nem com as respectivas mães, e sim, uma com a outra. Janis e Ana se tornam amigas, confidentes, protetoras e amantes, porém conservam o laço de transmissão de conhecimento entre gerações. Pedro Almodóvar sempre foi fascinado pelas histórias de duplos, e pelo medo (ou desejo) de ver a cópia substituir o original. A Pele que Habito (2011), Fale com Ela (2002), Tudo sobre Minha Mãe (1999), A Flor do meu Segredo (1995) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) lidam com o pavor de se sentir esquecido pelo grande amor, substituído por outra mulher, ou ainda rejeitado pelos pais. Aqui, o paralelismo se estabelece entre os bebês trocados, entre a maternidade não-consanguínea: posso me sentir mãe de um filho que não gerei?
O generoso roteiro expande os laços de afeto para uma noção mais ampla de comunidade: as protagonistas recebem apoio direto da melhor amiga Elena (Rossy de Palma), da empregada doméstica, do pai da criança transformado em companheiro casual, dos vizinhos, etc. Contrariamente à geração da guerra, formada por núcleos patriarcais vazios — vide a cena com diversas mulheres chorando pelos pais desconhecidos —, a sociedade atual seria formada por laços eletivos, mutáveis, fluidos. Janis constitui uma protagonista livre de amarras profissionais, financeiras e emocionais, graças à sua condição burguesa. Ela representa um ideal de acolhimento materno que vai além da filha pequena: a fotógrafa recebe em sua casa personagens de direita e de esquerda, o seu bebê e o dos outros, os espanhóis e os imigrantes, os cultos e os ignorantes. Pela abertura à alteridade, converte-se num alter-ego do cineasta.
A obsessão temática cede espaço a uma rememoração melancólica, na qual a justiça se opõe à vingança.
A propósito do posicionamento do diretor, Almodóvar elabora um drama sóbrio, mesmo explicativo. Penélope Cruz veste uma camiseta com os dizeres “Nós todo(a)s deveríamos ser feministas”. Sua personagem detalha os horrores da ditadura a Arturo (Israel Elejalde) durante uma caminhada livre de propósitos cênicos, e dá lições a Ana a respeito do passado esquecido pela juventude atual. O cineasta verbaliza o que pensa através desta mulher, de modo descritivo e sereno. Chega a surpreender que o diretor dos excessos, das cores e loucuras, seja capaz de uma obra tão calma, linear e clássica a respeito de um período turbulento.
Ora, ao invés de se indignar com as violações de direitos humanos de décadas atrás, ele aborda o tema com distanciamento em relação ao caso — uma postura de quem já chorou suas dores e fechou as cicatrizes. A heroína lança o pedido de exumação dos corpos e parte para viver sua vida, ter novos amores e filhos, sem cobrar urgência no andamento do processo. Talvez este seja o aspecto de maior surpresa: a capacidade de contemplação, ao invés do fervor imediatista. Janis nunca se tornará uma justiceira, agindo em nome da humanidade e enfrentando perversas forças opositoras — ela se distingue da heroína hollywoodiana no estilo de Erin Brokovich. A personagem faz aquilo que lhe cabe, sem deixar o trauma familiar impedi-la de levar uma vida autônoma. A obsessão temática cede espaço a uma rememoração melancólica, na qual a justiça se opõe à vingança.
Alguns fãs, cinéfilos e críticos têm deplorado a ausência daquele grão de loucura comum nas obras do cineasta. Faltam os personagens extravagantes, os acontecimentos mirabolantes, e a sugestão de que a realidade é movida por absurdos. Afinal, mesmo grandes reviravoltas, relacionadas a testes genéticos, se resolvem em silêncio, com personagens atônitos diante de uma tela de computador. No entanto, esta cobrança é feita sob medida para Almodóvar: nenhum outro cineasta se vê preso a exigências de personagens extrovertidos e cores fortes. O pensamento autoral leva o espectador a acreditar que a obra teria sido realizada para ele, podendo assim, na posição de consumidor, exigir o retorno dos traços que haviam agradado nas obras anteriores. Esperamos cada vez mais uma obra sob medida, personalizada — um Almodóvar “bastante almodovariano”.
A tautologia revela a fragilidade deste raciocínio: qualquer abordagem do espanhol enquanto diretor será, por definição, almodovariana. Apesar da presença de um relacionamento forte entre duas mulheres, e da sessão de fotos com uma mulher transexual, reclamou-se da falta de representatividade LGBT, ou de um suposto “encaretamento” da direção. No entanto, seria falho medir o sucesso da empreitada pela quantidade de traços autorais. Neste projeto desenvolvido há mais de dez anos, o diretor se faz recluso, internalizando horrores e abordando de maneira contida a ditadura, a tortura, o estupro, a guerra. Mães Paralelas se torna um drama tão explicativo, em termos de fatos, quanto subentendido, em teor emocional — em oposição ao espetáculo, ele presenteia o intelocutor com uma reflexão íntima.