Mali Twist (2021)

Morte e vida socialista

título original (ano)
Twist à Bamako (2021)
país
França, Canadá, Senegal, Itália, Mali
gênero
Drama, Histórico
duração
129 minutos
direção
Robert Guédiguian
elenco
Stéphane Bak, Alice da Luz, Saabo Balde, Bakary Diombera, Ahmed Dramé, Diouc Koma, Miveck Packa, Issaka Sawadogo, Youssouf Djoara Mbadi, Abdoulaye Diakhaté, Gaëlle Hottmongo
visto em
Cinemas

Samba Touré é um rapaz idealista. O jovem militante da revolução socialista no Mali se expressa por meio da crença inabalável na evolução natural da sociedade. “O casamento forçado vai acabar”, “Os agricultores vão receber por seus esforços”, “Os empregados receberão o justo valor de seu trabalho”. Ele viaja de vilarejo em vilarejo, pregando a palavra do presidente, explicando aos cidadãos os valores desta transformação social. No fundo, acredita que todos aceitarão seus princípios igualitários, pela obviedade das vantagens que estes valores representam. No entanto, depara-se com homens sedentos por dinheiro, que não estão dispostos a compartilhar seus lucros com os mais pobres.

No cinema norte-americano, tal líder ingênuo e aguerrido seria consagrado como herói, recebendo de presente do destino o amor de uma mulher fiel. Ora, o cineasta Robert Guédiguian enxerga seu protagonista por um olhar agridoce. É claro que as propostas de Samba não prosperarão — seja pelo conhecimento histórico do espectador acerca das transformações políticas no país africano, seja pela incapacidade diplomática do garoto de dialogar com partes opostas. Em Mali Twist, o diretor explora o nascimento e morte das revoluções, ou ainda a beleza e a impossibilidade prática das utopias juvenis.

É interessante que ele se afaste de sua França natal, e mais especificamente, do cenário sulista de Marselha que concentra a quase-totalidade de sua obra. Agora, o artista explicitamente engajado, à esquerda, tenta compreender os efeitos nefastos da colonização de seu próprio país nas nações africanas. De que maneira a pauperização deixada pelas potências europeias impede que novas configurações políticas surjam do solo árido? A trajetória política de Samba seria mais árdua do que aquela dos equivalentes franceses? O roteiro desenha ao longo deste percurso a ignorância, a fome, a sede, o analfabetismo, os estupros conjugais, o fanatismo religioso.

Assim, é possível considerar Mali Twist como um mea culpa da nação europeia diante das violências exercidas em solo alheio. Recentemente, a crítica e a imprensa passaram a se preocupar cada vez que um diretor europeu, branco e de meia-idade começa a denunciar a pobreza em alguma nação distante. Ora, que direito ele teria de representar aqueles povos? Possuiria lugar de fala para tal? Deteria conhecimentos suficientes para retratar a evolução social alheia? As exigências de representatividade e protagonismo parecem estar contra Guédiguian, cineasta aclamado cujo caminho foi vetado nos principais festivais internacionais com este longa-metragem.

Há notável esforço de respeitar a língua, os cenários das casas, os figurinos, sem transformar a pobreza em espetáculo, nem numa exposição piedosa e moralista da dor alheia.

Mesmo assim, o criador pesquisa, se documenta, respeita nomes e datas, e faz o possível para emprestar ao Mali um olhar distanciado, solene, de quem observa ao invés de afirmar. Conforme Samba prega aos colegas, a câmera permanece afastada, em meio à multidão, confundindo-se com os olhares dos coadjuvantes que desejam aprender, não ensinar nada. O boom do twist no país ocorreu, assim como as revoltas de comerciantes contra os revolucionários socialistas. Há notável esforço de respeitar a língua, os cenários das casas, os figurinos, sem transformar a pobreza em espetáculo, nem numa exposição piedosa e moralista da dor alheia.

A princípio, pelo menos, Guédiguian implementa um olhar plácido, com fotografia de luzes naturais, e falas pouco articuladas, diluída pela riqueza dos sons e ruídos locais. A preocupação em evocar um ambiente de transformações através de som e imagem se mostra tão potente quanto os acontecimentos que ali ocorrem. Apenas as cenas de dança, com suas fotografias em still acompanhando o baile, permitem uma escapatória multicolorida e quase fantástica, rumo aos delírios da arte. Para o projeto, o vigor da dança e da sexualidade nunca se dissocia do furor político. Ambos representam movimentos, investimentos libidinais, como se a juventude fosse o grupo naturalmente propenso a crer em mudanças — até ser freada por uma geração anterior, conservadora e careta. Os sonhos nascem livres, mas a sociedade os corrompe. Neste filme, o painel de veteranos, mesmo socialistas, sustenta ideias arcaicas e bastante desanimadoras.

Por esta razão, Samba se comunica explicitamente com a linguagem dos sonhos: “Eu sonho enquanto ando”, ele explica à menina que acabou de conhecer e que, na cena seguinte, se tornará o grande amor de sua vida. “São os sonhadores que mudam o mundo”, sublinha adiante. “Você é o meu sonho. Você e o nosso bebê”, dispara a Lara (Alice da Luz). O amor romântico, puro e idealizado, se casa com uma percepção igualmente pura da política. Neste sentido, o relacionamento próximo de Romeu e Julieta, com impossibilidades sociais e rivalidades sangrentas (ela já está casada, à força, com um homem de seu vilarejo), se justifica pela imersão no ponto de vista crédulo do garoto. O final, assim como para Shakespeare, será trágico.

Tamanho lirismo e sentimentalidade produzem um aspecto edulcorado, e um tanto pedagógico, que motivou os principais comentários de aversão ao filme. O texto é movido por frases de efeito e atos de bravura, além de uma conveniente disputa no interior da própria família — o pai de Samba lidera o movimento reacionário. A intromissão do amor repentino, a posição vitimista da garota que nunca domina o ponto de vista, e as traições abruptas dos principais amigos também traduzem um universo exemplar, acessório, repleto de mocinhos e bandidos, amores e desamores. Guédiguian abandona assim o realismo social em prol de uma visão pautada pelos sentimentos e emoções.

As duas esferas nem sempre se reúnem a contento: conforme aprofunda as disputas no partido socialista, o roteiro se esquece de Lara, explicitando qual dos dois conflitos lhe interessa de fato. A perseguição do marido e irmão da jovem é dilatada, e convenientemente minimizada para o protagonista ter tempo de concluir seu aprendizado acerca da pobreza de espírito dos homens. Paira um teor teatral, no sentido de permitir uma trilha sonora exacerbada, além de virtudes claras demais, ações demasiadamente marcadas (beijos, mortes, brigas), e preocupadas com a compreensão do público. O cineasta abandona parte considerável da complexidade sociopolítica em nome da busca por um público amplo — algo que, em seu país, não se confirmou, posto que o drama atingiu modestos 127 mil espectadores.

Questões de espectatorialidade à parte, Mali Twist representa uma tentativa importante de descentralizar a obra de Guédiguian, diretor acusado com frequência de “fazer sempre o mesmo filme” — acusação aplicada a outros europeus que voltaram sua atenção à África e ao Oriente Médio, como os irmãos Dardenne. O cineasta do humanismo, especializado em representar os grandes sentimentos de pequenos cidadãos anônimos, sejam eles pescadores ou donos de botecos, busca expandir seu olhar afetuoso a outros horizontes, literalmente. Ele esbarra na construção fabular, certamente competente em sua construção, ainda que menos crítica e potente do que sua percepção da sociedade francesa.

Mali Twist (2021)
6
Nota 6/10

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