Dançando no Silêncio (2022)

Arte-terapia

título original (ano)
Houria (2022)
país
Argélia
gênero
Drama
duração
104 minutos
direção
Mounia Meddour
elenco
Lyna Khoudri, Rachida Brakni, Nadia Kaci, Hilda Amira Douaouda, Meriem Medjkane, Zahra Manel Doumandji, Sarah Hamdi, Sarah Guendouz, Amina Benghernaout, Camila Halima-Filali, Marwan Fares, Hassen Ferhani
visto em
Cinemas

O filme se inicia com uma dança solitária. Utilizando fones de ouvido, a bailarina Houria (Lyna Khoudri) escuta em solitário a trilha sonora que banha seus passos, ensaiados no terraço de um prédio residencial. A coreografia se converte em presságio: após um ataque violento nas ruas da cidade, ela perde a capacidade de falar. Segundo os médicos, nenhum impeditivo físico frearia a voz, no entanto, o impacto da agressão emudece a heroína. Ela escuta, porém, se cala. O silêncio da cena de abertura se torna uma condição perene à garota.

Logo, a narrativa se desenvolve no embate entre a opressão e a libertação, ou entre a violência masculina e a fuga feminina através das artes. Os espaços públicos representam perigo latente às mulheres: além de espancadas, elas são perseguidas, insultadas, assediadas. As discussões políticas indicam que uma nova onda autoritária se aproxima da Argélia, condenando a autonomia destas jovens. Muitas delas pensam no exílio para escapar a um domínio histórico de homens. “Ainda bem que nascemos depois da guerra”, comemora tristemente a irmã de Houria.

Em oposição às noites sombrias e aos bandidos ferozes, encontra-se a comunhão feminina concretizada pela dança. A heroína segue os passos da mãe, uma professora de balé, e pensa em seguir carreira profissional. Após o incidente, descobre uma maneira, ainda que improvisada, de se expressar. Os movimentos abandonam o rigor profundo da cartilha clássica, privilegiando os estilos moderno e contemporâneo. A sororidade é oferecida pela diretora Mounia Meddour enquanto única forma de resistência social. Nos passeios pelo parque e nos ensaios do galpão, elas riem e relaxam, opondo-se à tensão das ruas.

O longa-metragem encontra maneiras bastante clássicas de encenar esta dualidade. Papicha (2019), da mesma cineasta, preferia revelar a intromissão da política na vida da protagonista, em planos onde ataques terroristas ocorriam literalmente atrás da garota. Aqui, a violência se faz simbólica, assim como os instantes de respiro recorrem a uma linguagem mais modesta e consensual da delicadeza. Entram em cena mulheres se divertindo no mar, banhadas pelo contraluz alaranjado do pôr do sol, junto a uma trilha sonora feminina e murmurada, significando o acolhimento às sofredoras.

Dançando no Silêncio se torna uma produção muito mais acessível ao gosto médio do que Papicha, e também mais simples em seu alcance político.

Os procedimentos continuam: os instantes de felicidade se traduzem na canção italiana Felicità; e os momentos de furor na noite argelina ganham a voz de Beyoncé. Uma versão italiana de Gloria também invade esta trilha sonora pop. Aqui, o término de amores românticos é traduzido pela quebra literal do retrato de um casal pelas mãos da polícia; e o universo dos homens se resume à rinha clandestina de bodes na noite da cidade. Ali, as feras de nomes sugestivos (Obama, Shakira) sangram e ferem. Há um caráter explícito, próximo do didático, na representação de luz contra trevas, de pulsão de morte contra pulsão de vida.

Neste sentido, Dançando no Silêncio se torna uma produção muito mais acessível ao gosto médio do que Papicha, e também mais simples em seu alcance político. Como símbolo da comunicação com a irmã, Houria desenha um sol, de traços simples e infantis, na palma da mão. Para transmitir a dinâmica das danças e das brigas, a câmera na mão treme excessivamente, tornando alguns movimentos imperceptíveis. Nota-se uma construção acentuada, beirando o literal, daquilo que se compreenderia por poesia feminina. 

Felizmente, Meddour sabe empregar os recursos familiares em ritmo ágil, além de controlar a contento o tom de suas atrizes. O texto evita enxergar nas mulheres apenas vítimas piedosas, enquanto foge à armadilha de devolver a fala à heroína para simbolizar seu renascimento. Encontram-se formas mais instigantes de propor o amadurecimento e o fortalecimento da figura traumatizada, sem ceder ao exílio, nem à vingança simbólica contra os homens. A diretora desenha em Houria uma nova figura de resistência, calada e tácita, contra o sistema.

Assim, propõe uma política dos afetos, em oposição à revanche institucional. Estas mulheres jamais saem às ruas para protestar contra as gangues — e como poderiam? Elas instigam uma militante experiente a seguir com suas reivindicações, enquanto isso, prosseguem com as coreografias. A aguardada apresentação final ocorrerá sem plateia, apenas entre elas e para elas mesmas, além da câmera cúmplice, que voa em drones, movendo-se à direita e à esquerda, numa indecisão a respeito da melhor maneira de captar a força da conjunção feminina.

No final, existe uma sinceridade despretensiosa e lúdica nesta produção. Longe de metáforas ambiciosas e linguagens arrojadas, Meddour assume o desafio de efetuar uma obra sentimental, com toques de tragédia, demonstrando respeito à psicologia das mulheres. Neste sentido, atinge um raro meio-termo entre a produção de arte e o filme hermético, que se costuma reservar aos festivais. Embora soe pouco ousado, demonstra uma qualidade segura em seu trabalho com o arroz-com-feijão do cinema clássico-narrativo, inspirador sem rebaixar a complexidade do discurso político. 

É curioso que, no Brasil, a obra tenha recebido o título Dançando no Silêncio, embora tenha sido distribuída no resto do mundo inteiro apenas como Houria (uma nova mulher-heroína, mulher-título, espécie de prima próxima de Papicha). O título se aproxima demais de Dançando no Escuro, de Lars von Trier (um projeto totalmente distinto), além de sugerir um elemento de surdez que jamais encontra paralelo na realização. De qualquer modo, é notável que o circuito brasileiro receba uma obra argelina feminina e acessível, de qualidade, capaz de despertar o interesse do público em salas “de arte” por novas descobertas oriundas dos países magrebinos.

Dançando no Silêncio (2022)
6
Nota 6/10

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