Não se deixe enganar pela imagem acima. Ramona (María Vázquez), a protagonista desta trama, se encontra raríssimas vezes em contemplação, admirando o horizonte. Na quase integralidade das cenas, a mulher está correndo de um lado para o outro, atendendo a telefonemas, brigando com a filha e o marido, buscando um emprego novo para substituir o cargo precário numa usina. Ela corre, anda, sobre escadas, dirige, cozinha, lava a louça, corre mais um pouco. O filme a coloca em movimento contínuo.
Para acompanhá-la, o diretor Álvaro Gago opta pelas ferramentas clássicas do drama social, consagrado sobretudo pela escola europeia dos irmãos Dardenne. Isso significa que a câmera na mão corre junto da heroína, revelando sua nuca, seu rosto, seu perfil. Não existe uma cena sequer com outro personagem destaque, ou com um conflito diferente da rotina atribulada da faxineira. Em oposição as coreografias “invisíveis” de câmera, quando estabilizadores tornam o deslocamento quase imperceptível, a obra espanhola privilegia uma câmera que chama atenção a si própria.
Isso significa que o dispositivo se esforça tanto quanto Ramona, porque segue a expressão precisa de seu corpo. Neste sentido, o espectador é levado, em primeiro lugar, a adotar o ponto de vista irrestrito da mulher: enxergamos cada interação pela perspectiva dela. Em segundo lugar, somos convidados a nos inserir num ritmo semelhante, como se fôssemos, em certa medida, cúmplices e parceiros da trabalhadora. Um plano fixo, distanciado, favoreceria os espaços, ou permitiria o distanciamento em relação às atitudes dela. Aqui, em contrapartida, prefere-se a imersão total.
A narrativa navega no limite da saturação. Afinal, sua personagem grita, tanto de felicidade quanto de raiva, provocando as amigas enquanto é provocada por elas. Há uma agressão inerente às sequências repletas de palavrões, gestos bruscos, insinuações eróticas. Quando não estão reclamando do trabalho uma da outra, as mulheres ridicularizam o desempenho dos companheiros na cama, fazem chacota da inutilidade dos maridos ou a falta de compaixão dos patrões. Há um senso de autoironia que permite certa leveza ao caldeirão de conflitos ininterruptos.
Ramona é descrita como uma mulher prestes a explodir. […] Felizmente, a possibilidade de um olhar perverso se atenua graças ao acréscimo de poesia.
Mesmo assim, Ramona é descrita como uma mulher prestes a explodir. Do minuto que acorda àquele em que se deita, ela efetua uma quantidade impensável de atividades, sem encontrar o mínimo respiro. Personagem impulsiva e inconsequente, ela grita primeiro, responde de maneira grosseira ao diretor da empresa, e então pensa no que fazer em seguida. Tossindo e respirando mal (a mulher tem asma), ela acende um cigarro após o outro. A médica avisa que os pulmões estão comprometidos. De certo modo, a narrativa nos prepara para um colapso iminente, como se quisesse ver até quando a faxineira suporta tal cotidiano.
Felizmente, a possibilidade de um olhar perverso se atenua graças ao acréscimo de poesia. A heroína ganha uma única oportunidade de respirar, quando o trabalho a obriga a permanecer alguns minutos no banco de uma praça, sozinha. Pela primeira vez, ela respira, fecha os olhos, ainda que com certo incômodo pela falta de costume. (Um zoom atípico se aproxima dela). As demais possibilidades de extravasar surgem no bar com a amiga, bebendo em excesso, e na discoteca com o marido. Nos dois casos, a noite se termina em briga, é claro. De qualquer modo, paira a oportunidade de algum prazer no horizonte, ainda que excessivo e desmedido, como tudo na vida da mulher.
Ao depositar tamanha responsabilidade no rosto, no corpo e na voz de sua protagonista, Matria perderia muito caso não contasse com uma atriz excelente, capaz de sustentar tamanha intensidade sem se tornar desagradável ao espectador. María Vázquez sustenta a integralidade da experiência com um comprometimento ímpar. Ela equilibra a rispidez de Ramona com um teor dramático ao fundo das falas, e uma alegria desesperada após os encontros com a amiga e as colegas de fábrica.
A atriz possui simpatia por sua personagem, de quem cuida com carinho e delicadeza. As mãos passando no rosto, a maneira de ajeitar os cabelos demonstram uma mulher vaidosa, enquanto as fotos apontando o dedo do meio revelam uma rebeldia, em certa medida, calculada. A personagem faz desta personalidade histriônica um escudo para não parar e refletir a respeito do emprego ruim, o marido abusivo, a filha que lhe foge ao controle. A melhor defesa, no seu caso, é o ataque.
A intérprete compreende isso muito bem, deixando que alguns segundo após cada gesto impulsivo representem uma calmaria, ou uma tomada de fôlego antes da correria seguinte. Neste processo, desenha-se uma psicologia complexa, nada heroica nem vitimista, para ela e suas colegas. Todas as mulheres da trama sustentam uma carga de trabalho não reconhecido socialmente — em especial, os afazeres domésticos e o cuidado com as crianças. A filha adulta, a melhor amiga e as colegas de usina representam esta carga suplementar de esforço feminino exigido — e nunca reconhecido.
Matria também se encerra muito bem. O cineasta encontra uma alternativa simbólica de otimismo, o que não significa a suspensão mágica dos obstáculos da heroína, pelo contrário. Procura-se uma opção realista e naturalista, em conformidade com a narrativa até então, para que a mulher possa enfim sentir alguma forma de controle sobre os rumos de sua vida. Nesta hora, alguns carinhos reprisados se extravasam, e o filme oferece ao espectador, enfim, a possibilidade de canalizar tanta tensão acumulada ao longo do drama.
Trata-se de uma solução clássica, pouco inventiva, porém bastante eficaz na perspectiva de um filme de personagens. Gago elabora um projeto não apenas sobre Ramona, e sim com Ramona, para ela. Existe uma maneira de dizer: eu te vejo, te entendo, e depois de tudo pelo que passou, te ofereço a saída que cabe ao cinema. No caso, forja-se uma brecha de ludicidade na opressão cotidiana. Ela terminará seu percurso em deslocamento, como sempre: a solução não será interrompê-la. No entanto, enxerga-se, pela primeira vez, a possibilidade de se mover rumo a um caminho melhor.