Nada (2024)

Tem uma estranha antena lá fora

título original (ano)
Nada (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
92 minutos
direção
Adriano Guimarães
elenco
Bel Kowarick, Denise Stutz, Thaís Puello
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

“O que você está vendo neste quarto?”. A artista plástica Ana (Bel Kowarick) pede à irmã Tereza (Denise Stutz) que descreva o espaço e os móveis da casa familiar, enquanto registra a resposta em vídeo. Começam as respostas mais evidentes, a respeito da porta, as paredes descascadas, os armários e objetos. Então, Tereza afirma enxergar o pai ao longe, caminhando pelas terras da fazenda. Ora, Ana sabe que o pai das duas morreu há décadas. Mesmo assim, a confissão continua: o pai está andando. “Ih, caiu. O pai caiu”

O filme brasiliense Nada investiga estados distintos de percepção. Curiosamente, cabe à artista o lado mais cético e pragmático: a irmã que deixou o campo e abraçou a vida na capital elabora obras envolvendo madeira cortada e outros materiais marcados pelo aspecto concreto, físico, real. Já aquela que vive solitária, junto às vacas e ao pasto, presencia a mãe e o pai mortos. Assiste à televisão junto à falecida, e coloca um prato de comida a mais na mesa para esta companhia tão agradável. Os vizinhos enxergam a si mesmos quando crianças, ou manifestam uma estranha síndrome de perda do esquecimento. A realidade, naquele local pacato, soa discretamente alterada.

O espectador se alia a Ana, nossa protagonista, que chega de fora e questiona as alegações dos moradores. Afinal, nada aparenta estar fora de ordem no terreno imutável, nem nos morros ao redor. Com uma exceção, é claro: a implementação de uma grande antena na região. Ninguém sabe quem a colocou, muito menos a sua utilidade. Quando é desligada (Por quem? Por qual motivo?), os sentidos voltam ao normal. Mas a luz e o zumbido elétrico mantêm os habitantes ao redor acesos, conectados a outra forma de desvendar o mundo. 

Existe um caráter melancólico na coletividade proposta pelo diretor Adriano Guimarães. Trata-se de uma disposição geográfica tão carente de afetos que os abraços de fantasmas se tornam melhores do que abraço nenhum.

Ninguém protesta contra o aparelho: ao que tudo indica, seus efeitos são percebidos como benéficos pela maioria — o homem solitário, por exemplo, enxerga no vulto em sua casa uma companhia reconfortante. Esta espécie de alucinação coletiva proporciona “mais assunto para conversar”, de acordo com um testemunho e, em linhas gerais, um acontecimento empolgante neste lugar onde pouco acontece. Existe um caráter melancólico na coletividade proposta pelo diretor Adriano Guimarães. Trata-se de uma disposição geográfica tão carente de afetos que os abraços de fantasmas se tornam melhores do que abraço nenhum.

A narrativa possui uma maneira discreta de abraçar o realismo fantástico. Ela parte do drama convencional, aproveitando uma das motivações mais frequentes do cinema clássico: a reunião forçada com o familiar à beira da morte. Então, introduz pequenos elementos de dissonância em relação ao realismo: o cachorro (falecido, como descobriremos mais tarde) comendo em cima da mesa, os pais mortos perambulando como vivos. Nada disso se aproxima do cinema de terror, pois o diretor evita o macabro, o soturno, e a tensão decorrente destas aparições. Para o autor e para os personagens, não há nada mais natural do que fantasmas andando entre nós.

Neste sentido, Nada às vezes se aproxima dos dramas japoneses clássicos, no qual vida e além-vida se comunicam sem sobressaltos. Evita-se a aparência espetacular ou assustadora com a intromissão de vultos e de falecidos. Partindo de uma premissa bastante adequada ao horror e à ficção científica (a antena azulada no final seria perfeita para a concretização da magia), o cineasta prefere mergulhar na crônica cotidiana da morte. Tereza sabe que vai morrer em decorrência de um aneurisma, mas não se importa. Ela foge tanto ao caráter de vítima quanto de guerreira contra a doença. E segue levando seus dias na mais completa banalidade.

O longa-metragem consegue transmitir a curiosa sensação de um tempo suspenso, um ritmo particular. A cidadezinha da irmã aparenta ter comunicação mínima com os povoados vizinhos (há pouco sinal de celular, somente em locais específicos), bastando a si própria em termos de estrutura e alimentação. As pessoas estão contentes com suas práticas repetidas, motivo pelo qual jamais se rebelam. Seria um entorpecimento, uma alienação? Ou, pelo contrário, uma forma de felicidade possível? Guimarães deixa a resposta em suspenso.

Nada se beneficia bastante das atuações preciosas de suas atrizes principais. Bel Kowarick e Denise Stutz possuem um grau de naturalidade com os diálogos, os corpos e interações que beiram o documental — algo que certamente contribui à multiplicidade de sentidos para o espectador. Com exceção dos diálogos por vezes artificiais, com as personagens se chamando o tempo inteiro pelo nome (“Tudo bem, Tereza? Sim, Ana. Quer comer, Tereza? Não, Ana”), as atrizes facilitam nossa tarefa de acreditar no pertencimento das protagonistas à rotina pacata, para uma, e ao estranhamento com o campo, para a outra. Elas nem mesmo precisam detalhar os motivos exatos da ruptura, três décadas atrás — caberá ao espectador pressupor o ocorrido.

As escolhas de fotografia contribuem à leve impressão de um realismo desafetado, ao limite do distanciamento. O diretor de fotografia André Carvalheira trabalha com uma janela (o formato da imagem) mais fechada, próxima do quadrado, em planos rigidamente fixos. Quando enxergamos as irmãs comendo através da janela, aproximamo-nos dos quadros de Hopper (vide imagem abaixo). Já o quartinho improvisado onde Ana dorme se modifica, passando de uma pequena cela sem janelas a um lugar mais arejado, filmado em diferentes planos fixos — mesmo por um ângulo de fora da casa, em momento posterior.

É uma pena que o título prejudique tanto a obra, seja comercialmente, seja em sua definição artística. Dificilmente poderia ter se escolhido algo mais vago, e menos apropriado a esta preciosa narrativa, do que “Nada”. Alguns artistas aparentam sabotar seus próprios esforços com escolhas do gênero. Ressalvas à parte, encontra-se nesta iniciativa um pequeno grande filme, cujo aspecto misterioso ressoa com o espectador por muito tempo após a sessão. Guimarães sabe exatamente o que deseja mostrar, e o que prefere ocultar, além da melhor maneira de aludir a fenômenos e acontecimentos. 

A conclusão — transformando a vida em arte, e explorando o cinema enquanto forma simbólica de driblar a morte — possui uma beleza ímpar. Neste momento, Ana parece fazer as pazes com esta tecnologia fantasmática que a segue, acertando as contas com o passado por meio de sua representação. Encontra uma alternativa para levar a fazenda à cidade, e a irmã, à eternidade. Estas poesias simples, que nunca chamam atenção a si mesmas (evitando a vaidade da direção de fotografia e da direção) ilustram as belas virtudes do filme.

Nada (2024)
7
Nota 7/10

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