A Casa dos Prazeres (2022)

Corpo-discurso

título original (ano)
La Maison (2022)
país
França, Bélgica
gênero
Drama
duração
90 minutos
direção
Anissa Bonnefont
elenco
Ana Girardot, Aure Atika, Philippe Rebbot, Rossy De Palma, Yannick Renier, Gina Jimenez, Lucas Englander, Nikita Bellucci, Hildegard Schroedter, Alexis van Stratum, Wim Willaert, Carole Weyers
visto em
Cinemas

A escritora Emma (Ana Girardot) decide se prostituir. Ingressa num bordel, atende diversos clientes, entrega-se com vigor a cada encontro. A mulher de classe-média não precisaria se dedicar a esta atividade, mas o faz por gosto, e porque planeja escrever um livro a respeito dos indivíduos que frequentam prostíbulos. Não haveria melhor maneira de conhecer a prostituição do que praticá-la, correto? A aventura concebida para algumas semanas dura dois anos. 

Diversos fetiches e clichês parecem se associar a este percurso, graças a um imaginário audiovisual construído em torno da prostituição por escolha (ao invés de falta de escolha). Pode-se pensar no incômodo de Catherine Deneuve em A Bela da Tarde; no aspecto desafetado e burguês de enfrentamento ao sistema em Jovem e Bela; na rebeldia da garota que “não vai dar, vai distribuir” em Bruna Surfistinha. A decisão de “se sujeitar” a tal prática soa estranha, inconcebível segundo os valores patriarcais e, por isso mesmo, cercada de pré-julgamentos morais.

A diretora Anissa Bonnefont trata, em primeiro lugar, de retirar os preconceitos nocivos à figura feminina. As motivações de Emma não dizem respeito ao sistema, nem ao olhar do outro. Ela o faz por si própria. Chega a reclamar da falta de confiança de seu agente literário, que não lhe empresta dinheiro para escrever, mas nenhum indício de penúria financeira se anuncia no horizonte. A heroína nem anuncia aos quatro ventos a nova função, nem a esconde, com vergonha. Ela conduz o trabalho do sexo como faria em qualquer cargo de escritório.

É fácil admirar A Casa dos Prazeres pelas armadilhas que sabe evitar. No entanto, Emma traz na boca todas as frases que a cineasta gostaria de expressar ao mundo, de maneira explícita e didática. Ela é uma mulher-discurso.

É fundamental, neste caso, que a obra tenha sido conduzida por uma mulher, a partir da obra real de uma mulher. Isso significa que o corpo feminino se expõe na câmera sem vergonha e, ao mesmo tempo, longe de qualquer sensualidade exploradora, típica do olhar dos homens. Ao mesmo tempo, os pênis e demais atributos dos clientes são revelados enquanto pedaços de carne tristes e nada performantes — as ereções desaparecem. Em igual medida, o sonho do romantismo redentor, à la Uma Bela Mulher, passa a quilômetros de distância.

Por isso, é fácil admirar A Casa dos Prazeres por tudo aquilo que ele não faz, e pelas armadilhas que sabe evitar. Compreende-se que grandes atrizes como Ana Girardot, Aure Atika e Rossy de Palma tenham topado a empreitada que retira do sexo o glamour, a espetacularização, o poder de choque. O desafio para os criadores consiste justamente em narrar a prostituição enquanto algo banal, privilegiando as esperas, o tédio. Sim, há violências, assim como existem clientes gentis. Na maior parte do caso, resumem-se a corpos sem nome nem história. “É algo mecânico”, garante a novata.

Em contrapartida, a necessidade de criar uma mulher ideal enfraquece o resultado. Emma é segura de si e do próprio corpo; tranquila com a sexualidade; confiante em sua escrita; resiliente face às dificuldades; amorosa e gentil com as colegas de profissão. Trata a todos de maneira respeitosa, sincera, honesta. Na busca por eliminar instantes de choque e reviravoltas narrativas evidentes, Bonnefont apresenta um drama indiferente, morno até demais. O evidente peso moral da temática se transforma em uma não-questão, uma evidência. A heroína apenas segue o percurso na “casa dos prazeres”, dia após dia.

Não espere, portanto, o instante em que ela será descoberta pelos colegas do mundo literário, ou quando fará um belo discurso a respeito de suas motivações. A confissão à irmã se converte num bate-papo banal na lavanderia, ao passo que a conversa com a mãe será eliminada pela montagem num salto temporal. Emma jamais sofre pressões financeiras, problemas de prazo, nem sente que as garotas estão perto de descobrir suas reais intenções no bordel. A jovem tampouco é vista escrevendo, apesar de tomar muitas notas. Deste modo, a questão ética fundamental a respeito da apropriação da vida alheia — ela teria o direito de expor a subjetividade de mulheres que confiaram nela, sem consulta prévia? — some de cena.

A artista-prostituta se expressa em belas frases, claras e articuladas, a respeito da condição feminina. Efetua paralelos entra a exploração capitalista e o desfrute masculino do corpo delas. Ela explica: “É um ato de graça ser prostituta. Dou prazer aos outros. Mas ninguém me dá prazer. E quando chego em casa, estou esgotada”. Ou ainda: “Sou uma atriz. Eu interpreto um papel”, e “Nunca me senti suja. O problema vem dos outros. Por que uma mulher não pode fazer isso por vontade própria?”.

Emma profere as frases certas, nas horas precisas, munidas do pensamento filosófico, feminista, politizado e social correto. Logo, ela consiste numa personagem de poucas dúvidas, falhas, incoerências e contradições, que seriam aspectos inerentes a qualquer pessoa comum. Ela atinge o posto de figura exemplar, ao invés de uma mulher particular, dotada de uma subjetividade única. A protagonista traz na boca todas as frases que a cineasta gostaria de expressar ao mundo, de maneira explícita e didática. Emma é uma mulher-discurso.

Tamanhas virtudes morais e segurança de si produzem uma figura de difícil identificação, quase um caso fabular — como seriam as prostitutas caso todas possuíssem ampla segurança financeira, de seus corpos, consciência de classe e discurso político afiado? A Casa dos Prazeres desveste o gênero “drama de prostituição” dos seus vícios, para cobri-lo de virtudes. Entre os dois, resta a incompatibilidade da retidão ética implacável com a psicologia complexa e marcada por nuances.

Restam as belas atuações, tanto de Girardot, quanto das coadjuvantes, além de um painel generoso de homens em posições secundárias, entrando na vida da personagem apenas quando permitido por ela, até o limite desejado pela escritora — neste ponto, também, ela se prova infalível. O resultado interessa sobretudo enquanto exercício das (novas) possibilidades de representar o corpo feminino e prostituído no cinema. Ele se sai melhor quando visto em oposição a tantos filmes problemáticos, do que em sua expressão artística autônoma.

A Casa dos Prazeres (2022)
6
Nota 6/10

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