Existe um tipo específico de cinema de terror, dedicado a representar nosso medo de mudanças. As inseguranças relacionadas a uma nova casa, um novo relacionamento ou um novo membro da família se convertem num espetáculo de perigos bastante reais. E se a casa nova for mal-assombrada? Se o bebê tiver algum problema? Se um estranho invadir o imóvel durante a noite? Pela lógica do horror, essas hipóteses fantasiosas, correspondentes aos nossos desejos, fobias e projeções, se materializam em adversários como fantasmas, criaturas demoníacas, assassinos em série, etc.
O Nascimento do Mal planeja condensar diversos medos de Julie (Melissa Barrera) numa única aventura. Ela acaba de chegar a um casarão gigantesco, em obras, e diante do local assustador, exclama-se: “Algo nessa casa me atrai”. Em se tratando de uma história de terror, compreende-se o caráter premonitório da fala. Ela está grávida, a cerca de dois meses do parto. Além disso, carrega as feridas da perda do primeiro bebê, natimorto. A crença de que seria culpada pela morte do pequeno Andrew é reforçada pelas falas, ações e símbolos espalhados pela casa.
Logo, o cenário se torna uma metáfora deste estado psíquico fragilizado, repleto de angústias. As casas em construção (caso do recente O Exorcista do Papa), ou bagunçadas, com caixas fechadas e dificuldades de acesso (caso de A Morte do Demônio: A Ascensão) ilustram o caos interno destas personagens, geralmente mulheres e mães. Os conflitos poucas vezes dizem respeito ao seu trabalho, seu ponto de vista, sua posição pública. Pelo contrário, estão ligados à natureza feminina, ao ambiente doméstico, à relação conflituosa com filhos e à necessidade de proteger o lar.
Os homens, neste caso, tornam-se secundários, espécie de contra-argumentos ao discurso das esposas. Quando estas alegam escutar vozes, ou perceber vultos no corredor, eles respondem que não, imagina, deve ser algo da sua cabeça. Descanse um pouco mais, não se preocupe, tudo ficará bem. Então, saem pela porta e vão ao trabalho. A racionalidade cínica da esfera masculina se confronta a uma sensibilidade aflorada ao limite da paranoia, da histeria. Como os opostos precisam ser radicalizados e exteriorizados (regras do gênero), a delicadeza extrema das mulheres se contrasta com a praticidade bruta e egoísta dos homens.
Nem vítima exemplar, nem heroína corajosa, Julie limita-se a um ventre inchado e uma cabeça desequilibrada. Esquece-se o mais importante: construir a mulher por trás do corpo em crise.
É tentador enxergar nestas trajetórias um exemplar típico de gaslighting — a prática de desqualificar a subjetividade alheia, sobretudo feminina, sob o pretexto de ser uma pessoa louca, instável, indigna de crença. O Bebê de Rosemary teria sido o pioneiro, e grande marco desta fórmula. Na trama, a pobre mulher grávida imaginava que o marido, os vizinhos e amigos pretendiam roubar o seu bebê. Ela estaria enlouquecendo? Seriam os hormônios, o medo da maternidade que se aproximava? Roman Polanski investia na estrutura de uma-contra-todos, esclarecendo que os pavores femininos eram fundamentados, e que havia, de fato, uma conspiração da comunidade contra a mulher angelical.
A diretora Lori Evans Taylor visa estabelecer algo semelhante em Bed Rest (título original). É interessante que o martírio feminino seja elaborado pelo olhar de uma cineasta mulher, como raramente ocorre na indústria norte-americana. Entretanto, o resultado é menos interessante do que poderia dar a entender o excelente trailer, além da presença de Barrera no papel principal e dos produtores de Pânico. A diretora demonstra dificuldade em trabalhar a psique da heroína, além da gradação e do espaço da casa — pontos fundamentais à crença no surto de Julie.
Em primeiro lugar, esta mulher nunca duvida do que está vendo ou ouvindo. Presa à cama devido a uma gravidez de risco, ela começa a avistar meninos no armário, criaturas incorpóreas embaixo da cama e marcas de pé no teto. Seria comum que a protagonista questionasse seus sentidos, tentasse de acalmar. Aqui, em contrapartida, ela imediatamente liga para a polícia, e grita que a cuidadora planeja roubar o seu bebê. O roteiro favorece a tese da loucura, ao invés de trabalhar a ambiguidade entre consciência e delírio.
Já as aparições tampouco deixam dúvidas a compartilhar com o espectador. Avessa a qualquer sutileza ou ambiguidade, Taylor aproxima a imagem da presença maligna, oferece a figura de garotinhos de cara completamente esbranquiçada (pois são fantasmas) e mulheres assustadoras com os longos cabelos pretos cobrindo o rosto (mais um desgastado lugar-comum). O mal ora possui corpo, ora se reduz a uma sensação. Às vezes, ataca como um bicho feroz (as mãos na barriga da gestante), mas em outros momentos, limita-se a observar de longe. Não existe coerência no modus operandi da criatura.
Pior é a maneira como o descontrole feminino se canaliza nos clichês do horror, utilizados sem refinamento, nem cuidado. A irrupção do sobrenatural é antecipada por efeitos sonoros altíssimos, junto ao jump scare que nunca assusta de fato, pelo fato de se anunciar com tamanha insistência. Há um histórico de mortes ocorridas na casa no passado; além de uma pulseira conectada à presença obsessora e vingativa. Embora descubra a relação entre o objeto e as forças do mal, a mulher insiste em usá-la.
Nota-se menos interesse em construir uma atmosfera maligna do que em tornar palpável a presença do perigo. O Nascimento do Mal carece de um trabalho de tensão e de ambientação, ambos assépticos em termos de luz, construção de enquadramentos, profundidade de campo e escolha de ângulos. A trilha sonora e os ruídos servem apenas a reforçar o teor imagético, sem propor atritos ou perturbações por conta própria. A montagem jamais segura a cena por tempo suficiente até que se comece a suspeitar do que se vê.
No final, as verdadeiras criaturas demoníacas serão as mulheres. Vivas ou mortas, elas se convertem em figuras enlouquecidas, vingativas, incontroláveis, hormonais. A produção coloca mãe contra mãe (algo que A Maldição da Chorona havia feito de maneira muito mais eficaz), estimando que a deformação de seus corpos devido à gravidez, a característica da menstruação e outras especificidades biológicas as transformariam em criaturas assustadoras em si próprias. O aspecto sobrenatural assusta menos do que o natural: Taylor associa a maternidade a uma aberração — ou um superpoder, dependendo do ponto de vista. A exemplo das sereias e das bruxas, as mães passionais seriam criaturas particularmente perigosas.
No elenco, Melissa Barrera faz possível a partir de uma personagem rasa. Desconhecemos seus talentos, habilidades, posicionamentos, objetivos para o futuro. Ela não apresenta astúcia, senso de humor, ou uma maneira específica de falar. Para o filme, a mulher grávida se limita à configuração de mãe. Como o filme de baixo orçamento pode contratar uma única estrela, os demais atores são bastante desconhecidos, com alguns ótimos achados (Edie Inksetter, no único papel dotado de complexidade da trama inteira) e outros nomes sofríveis em termos de composição (Guy Burnet como o marido malvado da vez).
Por fim, é curioso perceber os contorcionismos de lançamento e distribuição para este projeto. O título brasileiro, O Nascimento do Mal, não possui nenhuma relação com a obra, sendo apenas uma evocação genérica do horror, capaz de sugerir erroneamente que o bebê traria algum componente satânico. Por mais que “Repouso Total” fosse uma má ideia, haveria centenas de nomes mais adequados à história contada. Além disso, o excelente trailer oferecia uma insistente e obsessiva gravação em off, com conselhos médicos dados a uma gestante: “Descanse”. “Tente manter a mente longe de preocupações”. “Respire devagar”. “Como é lindo dar à luz a um novo bebê”. Esta ironia entre som e imagem é algo que falta profundamente ao resultado final.
Talvez por isso os distribuidores americanos, e brasileiros, tenham ficado confusos quanto à melhor maneira de vender este produto, incapaz de se decidir entre horror e suspense psicológico; entre se levar a sério e se ironizar; entre permanecer ao lado da mulher e se divertir em torturá-la. Com Polanski, era óbvio que Rosemary tinha razão. Aqui, Julie parece, de fato, precisar dos cuidados paternalistas do marido e da enfermeira. Nem vítima exemplar, nem heroína corajosa, Julie limita-se a um ventre inchado e uma cabeça desequilibrada. Esquece-se o mais importante: construir a mulher por trás do corpo em crise.