A Morte do Demônio: A Ascensão (2023)

Medo da mãe

título original (ano)
Evil Dead Rise (2023)
país
Nova Zelândia, EUA, Irlanda
gênero
Terror
duração
97 minutos
direção
Lee Cronin
elenco
Alyssa Sutherland, Lily Sullivan, Nell Fisher, Gabrielle Echols, Richard Crouchley, Jayden Daniels, Mark Mitchinson, Mirabai Pease, Noah Paul
visto em
Cinemas

A ação deste filme se inicia numa cabana, como se esperaria da franquia A Morte do Demônio. Estas histórias sempre se desenvolveram no isolamento da natureza, confrontando o indivíduo aos ataques potentes da união entre natural e sobrenatural. Nas tramas originais, os personagens constituíam vítimas torturadas por inúmeras agressões repentinas, vindas de todas as partes. Cipós e criaturas demoníacas tinham como objetivo central demonstrar a fraqueza de homens (e mulheres, em especial) que se sentiam seguros demais.

Na primeira cena, os demônios possessores e violentos, que provocam vômitos, sangue e inúmeras secreções, atacam um grupo de jovens numa viagem de fim de semana. O roteiro não oferece motivo para nos interessarmos por nenhum deles, visto que morrerão em breve. Como de costume no horror, é preciso começar demonstrando a seriedade da ameaça a seguir, caso contrário, o espectador pode não acreditar que o perigo seja tão grave assim. A movimentação invisível das forças do mal é comparada ao deslocamento de um drone, que também percorre as árvores até chegar aos protagonistas.

O elemento mais interessante do início provém de uma leitura macabra de O Morro dos Ventos Uivantes — uma referência literária muito distante do universo do horror. No entanto, destacando as frases certas, com uma entonação diabólica, o livro é transformado em maldição e intimidação. O trecho soa ainda mais assombroso porque o demônio revela conhecer de cor as citações do livro folheado pela garota tímida. Existe algo mais pavoroso do que uma criatura das trevas capaz de citar Emily Brontë de memória?

As mulheres seguem no posto de protagonistas, funcionando como heroínas e mártires, alternadamente. […] A maternidade monstruosa, ou pelo menos conflituosa, se converte no principal dilema do longa-metragem.

Em seguida, no entanto, a ação se desloca à cidade. O demônio faz seu estrago e, então, vai embora. Logo, a câmera precisa se deslocar para acompanhá-lo. Será ele, sempre, o protagonista das narrativas, que se articulam em função do ataque, em torno dele, antecipando-o. Cada figura aparece em cena apenas para ser vitimizada a seguir, ou para reagir a esta presença. O demônio condiciona os movimentos de câmera, promove a mudança substantiva de cenário, escolhe os protagonistas, possui quem deseja. Em última instância, ele representa o diretor em cena, enquanto o olhar da mise en scène se identifica com a criatura agressora, ao invés daquelas atacadas.

Mesmo assim, há mais semelhanças entre a cabana e o apartamento do que se poderia imaginar. Conforme frisou o crítico cearense Daniel Herculano, o imóvel na cidade se encontra num apartamento condenado, a poucos dias da demolição. Após um pequeno tremor de terra na região, os moradores se veem impedidos de sair, pois o elevador para de funcionar, e as escadas desmoronam. (Novamente, forças da natureza e forças do além trabalham juntas para torturar humanos aleatórios). Ninguém vêm ajudar a pobre família fragilizada, razão pela qual fica à mercê dos jogos sádicos do demônio. O isolamento e a impossibilidade de fugir transformam o apartamento num espaço análogo à cabana tradicional.

As mulheres seguem no posto de protagonistas, funcionando como heroínas e mártires, alternadamente. As irmãs Ellie (Alyssa Sutherland) e Beth (Lily Sullivan) representam figuras fortes, independentes, urbanas e modernas. A primeira trabalha como tatuadora, e cria sozinha os três filhos de maneira libertária, à beira da negligência. A segunda investe na carreira de técnica acústica, calibrando os instrumentos de músicos de rock. Ambas lutam com dilemas relacionados à maternidade: a primeira, sem dinheiro nem apoio, sofre para criar três filhos, e a segunda se descobre grávida, algo que fugia aos planos.

A maternidade monstruosa, ou pelo menos conflituosa, se converte no principal dilema do longa-metragem. O demônio de voz grave e masculina invade o corpo destas mães, ou das garotas adolescentes, para deturpar o ideal de pureza e altruísmo esperado da maternidade. Subitamente, a mãe gentil começa a atacar os próprios filhos. A adolescente, uma vez possuída, devora vidro para “destruir os bichinhos na barriga”, em outra alusão ao aspecto grotesco da vida crescendo em seu corpo. Confrontado pelos moradores e vizinhos, o diabo imediatamente assume uma voz feminina, doce, materna. Como resistir ao apelo de uma mãe que deseja apenas ver seus filhos?

A contradição entre os ataques violentos (da força sobrenatural) e a defesa incondicional (esperada das mães) produz os conflitos mais interessantes do longa-metragem. De certo modo, todos os personagens procuram pelo mal, partem em busca da possessão e de suas consequências. O filho mais velho abre o livro dos mortos, mesmo sabendo que pode invocar uma criatura do além. A filha menor abre a porta, apesar das ordens explícitas de deixar a mãe possuída sozinha, no corredor. A própria Ellie indica aos filhos que, após um terremoto, ninguém deve utilizar o elevador. Adivinha o que ela faz em seguida?

A melhor cena decorre de uma performance do demônio. Ciente de ter público atrás da porta trancada, ele demonstra seu potencial de mortes, sua sedução e sua variedade de ações em frente ao olho mágico (imagem em destaque, acima). Passa a assassinar diante desta lente, como faria a uma câmera. Quando destroça corpos, joga-os de volta ao palco, para ficar em quadro e ser presenciado pelos espectadores. Utiliza a profundidade de campo, sugere ações pelo extraquadro, aproxima-se da lente para construir um plano próximo — este demônio está pronto para seu close-up. A bela sequência representa o ápice do mal enquanto diretor de seu próprio universo cênico.

De resto, haverá sequências menos instigantes conceitualmente, além de vícios tradicionais do horror de possessão. Estão presentes as locações inexplicavelmente escuras; os jump scares com figuras sombrias passando rapidamente atrás dos personagens; o tratamento estridente de som; a mulher possuída em postura aracnídea. Coadjuvantes engasgando com olhos humanos e inimigos empalados até a morte garantem o humor do absurdo, a lógica do mais é mais, com o diferencial que a direção reconhece alegremente o ridículo e o inverossímil, e os abraça sem disfarçá-los.

Isso porque o adversário, em A Morte do Demônio: A Ascensão, pode atacar quando quiser, da maneira que desejar, provocando efeitos distintos a cada vez. Ele pode ficar preso pelo trinco de uma porta, embora possa viajar no espaço, de maneira invisível e incorpórea. Este ser possui uma força sobre-humana, conseguindo quebrar colunas vertebrais num segundo, porém depois recebe alguns socos e cai no chão. Ele apresenta-se sozinho, ou então numa forma combinada de corpos. Pode produzir, em suas vítimas, olhos coloridos, maquiagem esbranquiçada, vômitos, ou nenhuma dessas características. Alerta aos usuários: os sintomas podem variar. 

O diretor Lee Cronin e sua criatura agem de maneira quase aleatória, seguindo regras próprias e não preestabelecidas em pacto com o espectador. Caso acredite que tal aparição provocará espanto e repulsa, o autor a utiliza, que ela possua algum significado ou não. Assim, os ataques soam óbvios demais, no sentido de não possuírem leitura para além do ato muito físico de destroçarem corpos e suscitarem uma reação física de asco no público. Não há motivo explícito para se atacar desta maneira, neste período específico — o demônio se torna uma figura selvagem e irracional.

Em outras palavras, o mal não possui motivações delimitadas, o que transforma a aventura numa experiência genérica enquanto terror social e contemporâneo. Os melhores filmes de horror atuais conseguem extrair da atualidade a fonte de inquietação (vide o fanatismo religioso em Batem à Porta; a alienação parental em Ressurection; o gaslighting em The Watcher; o estupro em Noites Brutais; a polarização de costumes em X: A Marca da Morte). Neste sentido, a sequência do horror criado por Sam Raimi soa anacrônica, incapaz de se adaptar a contento ao espectador atual. Ao invés de oferecer uma reflexão em forma de cautionary tale, prefere as reações mais epidérmicas — e também mais vazias, fáceis e retóricas — de corpos mutilados, cobertos de sangue e regurgitando gosmas indefinidas. 

A Morte do Demônio: A Ascensão (2023)
6
Nota 6/10

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