A tecnologia funerária evoluiu. Agora, é possível enterrar as pessoas queridas em mortalhas que preservam o corpo por mais tempo. Os cadáveres são vigiados por câmeras internas que permitem aos familiares enxergarem exatamente o que resta das pessoas enterradas, ano após ano. Um aplicativo facilita o acesso às imagens, que permitem uma visualização em diversos ângulos. Uma atualização touch screen visa oferecer uma interação ainda maior com os corpos.
Sempre fascinado pela relação entre a humanidade e a tecnologia (o que implica na capacidade de intervir nos seres humanos), David Cronenberg se volta desta vez aos corpos na acepção mais literal do termo. Todos os personagens deste drama são focados em sua relação com sexo, corporeidade e cadáveres. Karsh (Vincent Cassel) coordena o cemitério 2.0 descrito acima. A motivação não poderia ser mais pessoal: ele perdeu a querida esposa, e acredita que o ato contemplar seus ossos em decomposição proporciona uma forma de reconforto.
Diane Kruger interpreta tanto a esposa (que retorna em sonhos, mutilada pelo câncer) quando a irmã da falecida. Esta última nutre a certeza de que potências estrangeiras poderiam utilizar as câmeras subterrâneas para obter informações secretas a respeito de seus inimigos. Outro fã de teorias da conspiração é Maury (Guy Pearce), ex-marido desta. O especialista em informática desenvolve uma assistente virtual, concebida com uso de Inteligência Artificial, capaz de alterar seu corpo, passando de uma secretária gentil a um coala peludo. Todos são obcecados com a ideia de modificar identidades tecnologicamente.
Nem o suspense do cemitério, nem as hipóteses mirabolantes dos heróis mórbidos, se desenvolve nesta narrativa. A situação se agrava devido à verborragia ininterrupta.
Apesar de tantas construções extremas e tragicômicas (o filme é bastante generoso em seu humor do absurdo), O Senhor dos Mortos (The Shrouds, no original) sustenta um único conflito durante duas horas de narrativa. Certa noite, alguns túmulos são profanados, o que leva estes conspiracionistas fanáticos a especularem freneticamente. E se os russos estiverem por trás disso? Ou os chineses? Quem sabe um ativista ambiental? Um familiar revoltado, um adversário comercial? A própria inteligência artificial? Em paralelo, e se mortalhas contivessem alguma substância tóxica? Um poder sobrenatural?
Ninguém se importa em investigar. O mundo dos fatos soa muito tedioso em comparação com as possibilidades fantásticas oferecidas pela imaginação. A verdade apenas mataria a especulação: enquanto não soubermos o que realmente ocorreu, tudo pode ter acontecido. Evidentemente, Cronenberg mergulha no mundo das fake news, no império da fé sobre o conhecimento, e da vontade de crença sobre a ciência. Em maior ou menor medida, todas as figuras deste longa-metragem se desconectam da real para adentrarem um delírio pessoal.
O problema é que nem o suspense do cemitério, nem as hipóteses mirabolantes dos heróis mórbidos, se desenvolve nesta narrativa. É impressionante como o roteiro gira em círculos, oferecendo inúmeras sequências que nem aprofundam o dilema dos personagens, nem avançam a trama. Longas chamas pelo celular, devaneios noturnos e ponderações num quarto japonês (que os personagens insistem em confundir com chinês ou coreano) se intercalam sem real comunicação, nem senso de finalidade. A história avança sem saber para onde.
A situação se agrava devido à verborragia ininterrupta. Cronenberg limita as interações a uma sucessão de conversas a dois. Os personagens falam, falam e falam, sobretudo quando não têm nada a dizer. “Você prefere o meu seio esquerdo ou direito?”. “Por quê?”. “Acho que prefiro o direito”. “Por que ele é maior”. “Sim, por esse motivo”. As informações já foram passadas, e as cenas parecem ter chegado ao final, mesmo assim, elas se esticam para que os heróis e heroínas possam conversar mais um pouco. Até durante o sexo intenso, eles trocam informações a respeito do ex-marido. Diante da surpresa de um corpo retalhado, seguem conversando a respeito de sua dor, verbalizando suas dúvidas, expressando seus pensamentos. Cronenberg soa avesso a qualquer forma de contemplação ou silêncio. Tudo precisa ser dito.
Em paralelo, nenhuma imagem provoca, surpreende ou interpela o espectador — seja pela composição, pela escolha de luz, enquadramentos. Não existem sons ousados em sua concepção, nem metáforas dignas deste nome, para além daquelas explícitas, e nomeadas enquanto tal: a mortalha metonimicamente aludindo à morte, as cicatrizes da mulher remetendo ao câncer, as costelas quebradas indicando um amor possessivo e fatal. O flerte da mulher cega consiste em pedir a Karsh para tocá-lo intimamente; enquanto a conspiracionista demonstra tesão, literalmente, em escutar teses estapafúrdias acerca da ordem das coisas.
Em O Senhor dos Mortos, os significados estão repetidos e reduzidos às relações imediatas com estes corpos. Tornam-se tão literais quando os esqueletos enterrados, em versões digitais pouco verossímeis. (Aliás, a impressão de uma tecnologia cada vez mais digital e fabular também atingia Crimes do Futuro, o filme anterior do cineasta). Nenhum cliente frequenta o cemitério futurista. Nenhuma mulher deste roteiro se priva do desejo de fazer sexo com o protagonista. Nenhum ato sexual soa realmente engajado, visceral, interessado pelas duas partes.
Assim, o cineasta segue um caminho curioso em sua carreira. Passou de um diretor que amava experimentar os corpos de maneira sanguínea, carnal e provocadora, para um filósofo da humanidade enquanto conceito amplo. Agora, a sociedade lhe interessa enquanto tema de debate, que ele prefere discutir a filmar; ou cogitar a representar. Os personagens de seus filmes se tornam meramente alegóricos, limitados a exemplos de uma causa, e distantes da complexidade moral e psicológica de uma pessoa real.
O autor se converte num observador atento dos temas sobre os quais, antigamente, costumava participar. Passou do instigador de um movimento ao sereno e inofensivo mestre de ousadias passadas (que Coralie Fargeat ou Julia Ducornau assumam esta função). Ao caracterizar seu personagem exatamente com suas roupas e seu corte de cabelo, Cronenberg se interessa menos pelo outro do pela referência a si próprio.
PS: Se o filme produz um efeito soporífero, a propaganda ostensiva dos carros de Elon Musk, incluindo planos de detalhe na marca do bilionário, tornam a investida ainda mais amarga.