“No meio desta América Latina convulsionada vemos o Chile, nosso país, um verdadeiro oásis, com uma democracia estável”. A frase foi proferida por Sebastián Piñera, ex-presidente do Chile, em 2019. Na época, ele aproveitou para desqualificar todos os países ao redor: “Argentina e Paraguai estão em recessão, o México e o Brasil, estagnados, a Bolívia e o Peru, em grande crise política. E a Colômbia, com o ressurgimento das FARCs e das guerrilhas”.
Esta autoilusão constitui o ponto de partida do documentário chileno, que decide investigar o “oásis” mencionado pelo governante. Os anos seguintes, como se sabe, trouxeram ao país sua cota de crises. O povo tomou as ruas contra as medidas da direita numa extensa série de protestos, que levaram à exigência de uma nova constituição e, em seguida, à eleição de uma proposta de esquerda. O filme se dedica a analisar estes anos de transformação social, política e econômica.
Talvez fosse conveniente aos diretores Tamara Uribe e Felipe Morgado apenas constatar os fatos, listando-os em ordem cronológica, de modo a explicar ao público tudo o que ocorreu. Haveria um viés político evidente, é claro, mas a impressão de uma “objetividade” ou da representação da realidade “como ela é” serviriam ao propósito de uma exposição didática dos conflitos nacionais. Felizmente, os autores apresentam pretensões de linguagem e discurso muito mais ambiciosas.
É impressionante o quanto uma obra consegue expressar, em termos de discurso político, pelas simples aproximações via montagem, ou pela escolha de ângulos e duração dos planos.
Em primeiro lugar, partem de um conceito estético rígido, capaz de conferir coesão à pluralidade de temas e acontecimentos. A dupla adota a premissa de “uma cena, um plano”. Isso significa que a câmera se encontra sempre parada, observando um espaço (a rua, a Câmara dos Deputados, o comitê de algum partido), aguardando atentamente até o conflito se produzir à sua frente. Para além de um “filme de observação”, pode-se falar numa obra de espera e escuta. Imagina-se que os autores tenham captado inúmeras horas de material até reunirem estas pérolas.
Em seguida, evita ferramentas pedagógicas para situar o espectador. Não existem entrevistas, letreiros durante a narrativa, dados, nem narração em off. Caberá ao público tirar as conclusões a respeito do posicionamento progressista dos autores. Eles escancaram os absurdos de um processo de transformação acelerada, marcado pelas derivas da desinformação, das fake news e do mundo de espetáculo propício às redes sociais. Ao invés de defender um lado contra o outro, o longa-metragem prefere apontar falhas de um sistema maior do que os partidos envolvidos.
Por isso, Oasis abraça o humor decorrente do incômodo e dos absurdos. Em plena audiência, um deputado saca o violão e começa a entoar uma composição própria, repleta de piadas consigo e com os outros. Outra dorme com os pés sobre a cadeira ao lado. As faxineiras encontram a maconha deixada por alguém nas bancadas. Um repórter solicita a perspectiva política da Sra. Pikachu, uma ativista conhecida por vestir a máscara do Pokémon. Nas ruas, um ativista com seu megafone grita que a nova constituição permitirá à ONU e outras instituições raptarem a sua criança para torná-la homossexual.
No nosso país em que ministras veem Jesus na goiabeira, deputados prestam homenagem a torturadores ou se vestem de mulher para um espetáculo de transfobia, a identificação se torna imediata. A obra chilena nos lembra que o circo da política partidária, tomada pelo ódio e pela vontade de crença (se alguma informação corresponde ao meu desejo, então deve ser verdadeira), ultrapassa fronteiras e participa de um fenômeno muito mais amplo. A necessidade de se tornar viral, de ser lembrado, de impactar e provocar ondas nas redes se sobrepõe à necessidade de discutir ações e pautas. Uma vez lançada a primeira proposta de constituição renovada, os passantes na rua ignoram o conteúdo do texto, embora tenham sentimentos fortes em relação ao projeto. “É verdade. Eu vi no YouTube!”, suplica um cidadão chileno.
A narrativa poderia perder o foco caso somente acumulasse insanidades e derivas do processo democrático. Felizmente, a rigidez formal e as conexões estabelecidas pela montagem permitem que o diálogo flua de maneira orgânica. Os candidatos e representantes elencam algum aspecto que reverbera na fala de um passante nas ruas, e então espelha a proposta de um manifestante, e assim por diante. A comicidade de um instante se intercala com outro sério, de modo que o tom jamais atinge o deboche, ou a paródia em si. Uribe e Morgado ultrapassam a deploração conformista de “tudo o que está aí”.
A direção sabe precisamente para onde olhar: enquanto o político disserta, em imagem projetada num telão, a câmera se posiciona ao lado da faxineira que limpa as cadeiras da Câmara. Enquanto as votações constitucionais sofrem com óbvios conflitos de interesses, o enquadramento se aproxima do pequeno grupo que luta para garantir a educação na forma de direito fundamental. Em outras palavras, valoriza iniciativas e esforços em meio às propostas da extrema-direita. Nem tudo está perdido: há organizações sérias remando contra a maré, algo que os autores valorizam a contento. É impressionante o quanto uma obra consegue expressar, em termos de discurso político, pelas simples aproximações via montagem, ou pela escolha de ângulos e duração dos planos.
Ao mesmo tempo, os cineastas demonstram impressionante cuidado e inteligência quanto ao local único onde posicionam a câmera em cada cena, e para onde miram. A imagem se encontra “dentro” de uma urna transparente de votação; no meio da troca de balas de borracha e bombas de efeito moral durante um protesto; no ângulo preciso para captar homens pescando num rio proibido, ao lado de uma fábrica poluente. As ironias estão contidas no interior da imagem, graças a uma escolha tão poética quanto bem-humorada de olhar ao mundo.
No fim, Oasis ainda encontra um símbolo eficaz para representar os desafios contemporâneos da política nacional: um incêndio combatido lentamente. A nação segue em chamas, o povo continua dividido, inflamado por ideias falsas e escandalosas, e incapaz de observar a si próprio com algum distanciamento. Em meio ao furacão, os diretores dão um passo atrás e esmiúçam um sistema em ruínas, ultrapassando o embate da polarização esquerda-direita. Através de suas imagens silenciosas, pensam os limites e derivas de uma organização social.