Oasis (2024)

Chile em chamas

título original (ano)
Oasis (2024)
país
Chile
linguagem
Documentário
duração
80 minutos
direção
Tamara Uribe, Felipe Morgado
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

“No meio desta América Latina convulsionada vemos o Chile, nosso país, um verdadeiro oásis, com uma democracia estável”. A frase foi proferida por Sebastián Piñera, ex-presidente do Chile, em 2019. Na época, ele aproveitou para desqualificar todos os países ao redor: “Argentina e Paraguai estão em recessão, o México e o Brasil, estagnados, a Bolívia e o Peru, em grande crise política. E a Colômbia, com o ressurgimento das FARCs e das guerrilhas”.

Esta autoilusão constitui o ponto de partida do documentário chileno, que decide investigar o “oásis” mencionado pelo governante. Os anos seguintes, como se sabe, trouxeram ao país sua cota de crises. O povo tomou as ruas contra as medidas da direita numa extensa série de protestos, que levaram à exigência de uma nova constituição e, em seguida, à eleição de uma proposta de esquerda. O filme se dedica a analisar estes anos de transformação social, política e econômica.

Talvez fosse conveniente aos diretores Tamara Uribe e Felipe Morgado apenas constatar os fatos, listando-os em ordem cronológica, de modo a explicar ao público tudo o que ocorreu. Haveria um viés político evidente, é claro, mas a impressão de uma “objetividade” ou da representação da realidade “como ela é” serviriam ao propósito de uma exposição didática dos conflitos nacionais. Felizmente, os autores apresentam pretensões de linguagem e discurso muito mais ambiciosas.

É impressionante o quanto uma obra consegue expressar, em termos de discurso político, pelas simples aproximações via montagem, ou pela escolha de ângulos e duração dos planos.

Em primeiro lugar, partem de um conceito estético rígido, capaz de conferir coesão à pluralidade de temas e acontecimentos. A dupla adota a premissa de “uma cena, um plano”. Isso significa que a câmera se encontra sempre parada, observando um espaço (a rua, a Câmara dos Deputados, o comitê de algum partido), aguardando atentamente até o conflito se produzir à sua frente. Para além de um “filme de observação”, pode-se falar numa obra de espera e escuta. Imagina-se que os autores tenham captado inúmeras horas de material até reunirem estas pérolas.

Em seguida, evita ferramentas pedagógicas para situar o espectador. Não existem entrevistas, letreiros durante a narrativa, dados, nem narração em off. Caberá ao público tirar as conclusões a respeito do posicionamento progressista dos autores. Eles escancaram os absurdos de um processo de transformação acelerada, marcado pelas derivas da desinformação, das fake news e do mundo de espetáculo propício às redes sociais. Ao invés de defender um lado contra o outro, o longa-metragem prefere apontar falhas de um sistema maior do que os partidos envolvidos.

Por isso, Oasis abraça o humor decorrente do incômodo e dos absurdos. Em plena audiência, um deputado saca o violão e começa a entoar uma composição própria, repleta de piadas consigo e com os outros. Outra dorme com os pés sobre a cadeira ao lado. As faxineiras encontram a maconha deixada por alguém nas bancadas. Um repórter solicita a perspectiva política da Sra. Pikachu, uma ativista conhecida por vestir a máscara do Pokémon. Nas ruas, um ativista com seu megafone grita que a nova constituição permitirá à ONU e outras instituições raptarem a sua criança para torná-la homossexual. 

No nosso país em que ministras veem Jesus na goiabeira, deputados prestam homenagem a torturadores ou se vestem de mulher para um espetáculo de transfobia, a identificação se torna imediata. A obra chilena nos lembra que o circo da política partidária, tomada pelo ódio e pela vontade de crença (se alguma informação corresponde ao meu desejo, então deve ser verdadeira), ultrapassa fronteiras e participa de um fenômeno muito mais amplo. A necessidade de se tornar viral, de ser lembrado, de impactar e provocar ondas nas redes se sobrepõe à necessidade de discutir ações e pautas. Uma vez lançada a primeira proposta de constituição renovada, os passantes na rua ignoram o conteúdo do texto, embora tenham sentimentos fortes em relação ao projeto. “É verdade. Eu vi no YouTube!”, suplica um cidadão chileno. 

A narrativa poderia perder o foco caso somente acumulasse insanidades e derivas do processo democrático. Felizmente, a rigidez formal e as conexões estabelecidas pela montagem permitem que o diálogo flua de maneira orgânica. Os candidatos e representantes elencam algum aspecto que reverbera na fala de um passante nas ruas, e então espelha a proposta de um manifestante, e assim por diante. A comicidade de um instante se intercala com outro sério, de modo que o tom jamais atinge o deboche, ou a paródia em si. Uribe e Morgado ultrapassam a deploração conformista de “tudo o que está aí”. 

A direção sabe precisamente para onde olhar: enquanto o político disserta, em imagem projetada num telão, a câmera se posiciona ao lado da faxineira que limpa as cadeiras da Câmara. Enquanto as votações constitucionais sofrem com óbvios conflitos de interesses, o enquadramento se aproxima do pequeno grupo que luta para garantir a educação na forma de direito fundamental. Em outras palavras, valoriza iniciativas e esforços em meio às propostas da extrema-direita. Nem tudo está perdido: há organizações sérias remando contra a maré, algo que os autores valorizam a contento. É impressionante o quanto uma obra consegue expressar, em termos de discurso político, pelas simples aproximações via montagem, ou pela escolha de ângulos e duração dos planos.

Ao mesmo tempo, os cineastas demonstram impressionante cuidado e inteligência quanto ao local único onde posicionam a câmera em cada cena, e para onde miram. A imagem se encontra “dentro” de uma urna transparente de votação; no meio da troca de balas de borracha e bombas de efeito moral durante um protesto; no ângulo preciso para captar homens pescando num rio proibido, ao lado de uma fábrica poluente. As ironias estão contidas no interior da imagem, graças a uma escolha tão poética quanto bem-humorada de olhar ao mundo.

No fim, Oasis ainda encontra um símbolo eficaz para representar os desafios contemporâneos da política nacional: um incêndio combatido lentamente. A nação segue em chamas, o povo continua dividido, inflamado por ideias falsas e escandalosas, e incapaz de observar a si próprio com algum distanciamento. Em meio ao furacão, os diretores dão um passo atrás e esmiúçam um sistema em ruínas, ultrapassando o embate da polarização esquerda-direita. Através de suas imagens silenciosas, pensam os limites e derivas de uma organização social. 

Oasis (2024)
9
Nota 9/10

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