Onda Nova (1983)

Mulheres em jogo

título original (ano)
Onda Nova (1983)
país
Brasil
gênero
Comédia
duração
102 minutos
direção
José Antonio Garcia, Ícaro Martins
elenco
Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Cida Moreira, Cristina Bolzan, D’Artagnan Jr., Ênio Gonçalves, Lucia Braga, Luis Carlos Braga, Neide Santos, Patrício Bisso, Petrônio Botelho, Pietro Ricci, Pita, Regina Carvalho, Vera Zimmermann, Tânia Alves
visto em
77º Festival de Locarno (2024)

Há muitos interesses distintos por trás de assistir a Onda Nova em pleno 2024, numa cópia restaurada, apresentada inclusive no Festival de Locarno. Primeiro, pela qualidade desta nova versão, repensada cuidadosamente em termos de cores, textura, granulação e limpeza das ranhuras de época. Deparamo-nos com o filme de quarenta anos atrás, que nunca foi considerado pela academia como uma obra-prima digna de conservação especial, como quem vê um projeto recém-filmado. É impressionante o avanço na preservação cinematográfica brasileira nestes últimos anos (no atual governo, diga-se).

Segundo, trata-se de uma iniciativa rara dentro da nossa trajetória audiovisual, mesmo para a época em que foi lançada. O longa-metragem segue alguns preceitos utilizados por raras obras do início dos anos 1980 (Amor Maldito seria outro exemplo notável), quando a pornochanchada se encontrava em declínio acelerado. Mesmo assim, convinha criar uma aparência de “filme com cenas quentes de sexo” para vender ao público uma comédia sem reais pretensões eróticas, muito menos pornográficas. Seria como vender Central do Brasil na forma de uma empolgante road trip pelo Nordeste — este elemento está presente, mas dificilmente constitui o foco do drama.

Além disso, partindo das convenções típicas de filmes machistas, os diretores José Antonio Garcia e Ícaro Martins elaboram uma obra queer, repleta de amores fluidos, múltiplos, que ultrapassam os rótulos de heterossexualidade, homossexualidade e afins. O homem másculo, apaixonado pela namorada, faz sexo em paralelo com o companheiro de quarto. As amigas da equipe de futebol, depois de saírem com o treinador e outros rapazes, beijam-se e dormem umas com as outras. Os anos da cultura hippie já tinham passado, porém, o discurso preserva o conceito da liberdade traduzida em prazeres experimentados coletivamente, sem interdições morais.

O que incomoda a moral vigente em Onda Nova não diz respeito à imagem do sexo (um tanto singelo, apesar de recorrente), mas à liberdade despudorada das mulheres em busca de autonomia, seja no direito ao esporte, ao sexo fora do casamento, ao aborto seguro.

O futebol entra neste contexto enquanto símbolo potente, visto que o filme foi elaborado logo após a permissão à modalidade feminina do esporte. A equipe Gayvotas Futebol Clube representa uma afronta à moral conservadora em sua simples existência. O fato de jogarem bem ou mal, ganharem campeonatos ou perderem partidas, se torna irrelevante. Até por isso, embora o futebol atravesse a narrativa inteira, ele nunca constitui um motor narrativo. O simples fato de mulheres estarem em campo, vestidas com os uniformes tradicionais, basta aos autores.

Assim, Onda Nova é lembrado sobretudo por fragmentos espalhados ao longo de um roteiro disperso. Narrativamente, o esta obra coral não contempla necessariamente a evolução de todas as protagonistas, preferindo um mosaico tão amplo quanto vago. Algumas jogadoras são esquecidas pelo caminho, outros conflitos (o aborto, a expulsão de casa) partem sem deixar vestígios. A estrutura episódica remete a uma colagem de esquetes livres envolvendo as jogadoras — vide a participação de Caetano Veloso, parodiando a si mesmo, e à sequência de Casagrande nu, em cena de sexo.

Um dos símbolos mais potentes surge na conclusão, quando dois jogos ocorrem em paralelo: aquele das mulheres, na primeira disputa internacional da equipe, e o outro, dos homens. A partida delas ocorre num gramado, dentro de um campeonato oficial. Já os homens participam de uma pelada informal sobre o chão de terra. O último jogador que completa o time veste a minissaia de couro preto da namorada do amigo, sem que a peça de acessório provoque surpresas. Enquanto isso, em casa, um homem acaba de se matar, embora a troca de bolas literalmente siga adiante. Continuar a viver, neste caso, significa continuar a jogar.

Garcia e Martins dedicam-se à performance, a exemplo de momentos com Carla Camurati nua, enroscada numa âncora e ajudada pela colega de equipe; e do abraço com Neide Santos, quando as duas posam para a câmera (e para o espectador), maquiadas à la David Bowie. As cenas de sexo se tornam tão coreografadas — uma evocação do coito, ao invés de sua representação naturalista — quanto as apresentações musicais de Tânia Alves pela noite, ou a morte teatral, claramente falsa, com o revólver. Aqui, o corpo brinca e se molda sem vaidades, mas também sem a necessidade de reproduzir os costumes tais quais se apresentavam. A comédia permite tal deslocamento do real rumo a um aspecto febril, jocoso, próximo da fantasia.

“Ei, tô precisando falar com você. É que eu sou virgem, e queria que você me descabaçasse”. O que incomoda a moral vigente em Onda Nova não diz respeito à imagem do sexo (um tanto singelo, apesar de recorrente), mas à liberdade despudorada das mulheres em busca de autonomia, seja no direito ao esporte, ao sexo fora do casamento, ao aborto seguro. Elas riem, beijam, conversam. O sexo adquire a leveza de uma brincadeira inconsequente — logo, o avesso da interpretação cristã, para quem o corpo representa um túmulo sagrado, grave, controlado por regras e passível de infinitas punições.

Um filme como este jamais poderia ocorrer no século XXI — algo compreensível e benéfico, visto que, se a sociedade passa por transformações, sua representação audiovisual precisaria acompanhá-las. Os códigos da diversidade sexual e de gênero são outros; as demandas relacionadas à orientação e identidade mudaram. Hoje, cobra-se, com razão, que o ponto de vista do erotismo feminino provenha das mulheres, que a homossexualidade e as identidades não-binárias sejam assumidas e verbalizadas como tais, que este mosaico social dialogue com questões de raça e etnia, com exploração trabalhista e configurações familiares. 

Uma personagem de 2024 dificilmente mandaria a família às favas para viver num cortiço com os amigos, transando no colchão na sala de estar, enquanto os colegas passam pelo cômodo. Hoje, pensariam de que modo comprar comida, que perspectivas teriam de futuro. O ideal de liberdade segue vivo, ainda que se manifeste de novas formas, com diferentes terminologias. Se Onda Nova respondia à ditadura (o filme foi censurado em sua totalidade pelos militares), o progressismo contemporâneo reage ao bolsonarismo, à ascensão evangélica, à impunidade do empresariado. A melhor partida de futebol feminino ocorreria entre as Gayvotas e as mulheres de Levante, de Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, de Casa de Bonecas. Ficariam de lados opostos do gramado, mas jogariam amigavelmente, em nome da mesma causa. E provavelmente tomariam uma cerveja juntas no final.

Onda Nova (1983)
6
Nota 6/10

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