As ruas do centro do Rio de Janeiro. Figuras marginalizadas expressam seus sonhos e dores através e cantos e dança. Enquadramentos fixos, luz natural. Estes trabalhadores informais, negros e periféricos, recebem tratamentos desumanos por parte dos clientes burgueses. Buscam reatar laços perdidos num cotidiano melancólico. Eventualmente, recebem, na forma de um devaneio, a possibilidade de emancipação, num palco reservado só para eles.
Esta premissa vale tanto para Pássaro Memória (2023) quanto para Fantasma Neon (2022), ambos de Leonardo Martinelli. Os filmes-irmãos partem de um único movimento, que consiste em oferecer um olhar lúdico aos indivíduos invisibilizados pelo sistema. Eles se tornam protagonistas, adquirem voz e controlam o ponto de vista. Mais do que isso, lideram gestos artísticos e literalmente estrelam seus próprios números musicais.
João ganhava, em sonho, a oportunidade de dançar sobre o palco luxuoso do Teatro Municipal. Lua (Ayla Gabriela), por sua vez, tem o corpo e a dança projetados sobre a lateral de um prédio, exposta num andar alto, à disposição da cidade inteira. Em meio às dificuldades, ele tentava reatar com o amor de sua vida. Ela busca reencontrar o pássaro perdido que lhe faz companhia, batizado de Memória. Ele lidava com o sujeito arrogante que reclamava de uma entrega. Ela, com um sujeito transfóbico que impede um cartaz colado, dizendo: “Vaza! Esse tipo que não é de Deus!”.
Martinelli segue explorando o potencial poético dos musicais tristes. Ele refina seus procedimentos, demonstrando prazer cada vez maior em brincar com os enquadramentos, os movimentos de câmera.
Ele expressava a tristeza numa fala um tantinho didática: “O que eu sei é que nem de neon eles enxergam a gente”. Ela efetua um caminho parecido, ao comentar com o colega: “Será que um dia a Memória vai posar na estátua de alguém como a gente?”. Existe sempre essa vontade de explicitar os discursos ao final, garantindo que as metáforas sejam compreendidas por um público mais amplo. O lamento visual, dançado, cantado e sofrido, acaba por ser também falado, verbalizado.
Leonardo Martinelli vem refinando seus procedimentos, demonstrando prazer cada vez maior em brincar com os enquadramentos, o rigor da simetria, os movimentos de câmera, junto ao diretor de fotografia Guilherme Tostes. Aqui, ele utiliza os prédios e apartamentos vazios para elaborar quadros-dentro-do-quadro, enquanto oculta o cliente de um bar com a sombra cuidadosamente pensada para cobrir seu rosto. Os tilts e movimentos panorâmicos correspondem à vontade de inserir, dentro de um único plano, os protagonistas à sociedade que não os acolhe. Uma reparação histórica via estética.
As atuações também se tornam mais fluidas, desafetadas, próximas da performance. Ayla Gabriela constitui um corpo em deslocamento, uma identidade e sexualidade que incomoda por sua simples presença. Ela não possui trejeitos fortes, apenas um olhar de sonho, de suspensão etérea ao real. “Nosso corpo é demarcado”, afirmou Erika Hilton. “Nosso corpo é político”, lembrava Linn da Quebrada. “Nosso corpo é pré-significado”, sublinhava Renata Carvalho nas entrevistas de Vento Seco. A existência de Ayla e do colega, interpretado por Henrique Bulhões, transmitem um discurso por si próprios.
Pássaro Memória segue esta trajetória autoral que consiste em aliar a extrema artificialidade (a dança do musical, o plano fixo da abertura, onde os personagens entram e saem numa coreografia precisa) e o despojamento de uma mulher que simplesmente passeia pela rua, perguntando pelo pássaro perdido. A dança segue crua, dessaturada, mesmo dessincronizada: o diretor prefere os gestos crus, nada espetacularizados do musical-evento.
O espectador se sente o único a testemunhar estes instantes ignorados pelos demais — nenhum passante ao acaso assiste à dança de Lua, assim como nenhum espectador se encontrava na plateia do Teatro Municipal para o pas de deux de João. As figuras invisíveis continuam invisíveis, ainda que possam sonhar. Algumas conseguem fugir — caso de Memória, deixando a cidade, justamente, sem lembranças, sem consciência, sem senso crítico. Uma cidade literalmente esvaziada. O Rio de Janeiro do cineasta parece ainda não ter despertado de um sonho doce, nem retomado as atividades desde a pandemia de Covid-19. Martinelli segue explorando o potencial poético dos musicais tristes.