Pássaro Memória (2023)

Rio em transe

título original (ano)
Pássaro Memória (2023)
país
Brazil, Reino Unido
gênero
Drama, Musical
duração
15 minutos
direção
Leonardo Martinelli
elenco
Ayla Gabriela, Henrique Bulhões, Jard Costa, Kley Hudson
visto em
Festival de Locarno 2023

As ruas do centro do Rio de Janeiro. Figuras marginalizadas expressam seus sonhos e dores através e cantos e dança. Enquadramentos fixos, luz natural. Estes trabalhadores informais, negros e periféricos, recebem tratamentos desumanos por parte dos clientes burgueses. Buscam reatar laços perdidos num cotidiano melancólico. Eventualmente, recebem, na forma de um devaneio, a possibilidade de emancipação, num palco reservado só para eles.

Esta premissa vale tanto para Pássaro Memória (2023) quanto para Fantasma Neon (2022), ambos de Leonardo Martinelli. Os filmes-irmãos partem de um único movimento, que consiste em oferecer um olhar lúdico aos indivíduos invisibilizados pelo sistema. Eles se tornam protagonistas, adquirem voz e controlam o ponto de vista. Mais do que isso, lideram gestos artísticos e literalmente estrelam seus próprios números musicais. 

João ganhava, em sonho, a oportunidade de dançar sobre o palco luxuoso do Teatro Municipal. Lua (Ayla Gabriela), por sua vez, tem o corpo e a dança projetados sobre a lateral de um prédio, exposta num andar alto, à disposição da cidade inteira. Em meio às dificuldades, ele tentava reatar com o amor de sua vida. Ela busca reencontrar o pássaro perdido que lhe faz companhia, batizado de Memória. Ele lidava com o sujeito arrogante que reclamava de uma entrega. Ela, com um sujeito transfóbico que impede um cartaz colado, dizendo: “Vaza! Esse tipo que não é de Deus!”.

Martinelli segue explorando o potencial poético dos musicais tristes. Ele refina seus procedimentos, demonstrando prazer cada vez maior em brincar com os enquadramentos, os movimentos de câmera.

Ele expressava a tristeza numa fala um tantinho didática: “O que eu sei é que nem de neon eles enxergam a gente”. Ela efetua um caminho parecido, ao comentar com o colega: “Será que um dia a Memória vai posar na estátua de alguém como a gente?”. Existe sempre essa vontade de explicitar os discursos ao final, garantindo que as metáforas sejam compreendidas por um público mais amplo. O lamento visual, dançado, cantado e sofrido, acaba por ser também falado, verbalizado.

Leonardo Martinelli vem refinando seus procedimentos, demonstrando prazer cada vez maior em brincar com os enquadramentos, o rigor da simetria, os movimentos de câmera, junto ao diretor de fotografia Guilherme Tostes. Aqui, ele utiliza os prédios e apartamentos vazios para elaborar quadros-dentro-do-quadro, enquanto oculta o cliente de um bar com a sombra cuidadosamente pensada para cobrir seu rosto. Os tilts e movimentos panorâmicos correspondem à vontade de inserir, dentro de um único plano, os protagonistas à sociedade que não os acolhe. Uma reparação histórica via estética.

As atuações também se tornam mais fluidas, desafetadas, próximas da performance. Ayla Gabriela constitui um corpo em deslocamento, uma identidade e sexualidade que incomoda por sua simples presença. Ela não possui trejeitos fortes, apenas um olhar de sonho, de suspensão etérea ao real. “Nosso corpo é demarcado”, afirmou Erika Hilton. “Nosso corpo é político”, lembrava Linn da Quebrada. “Nosso corpo é pré-significado”, sublinhava Renata Carvalho nas entrevistas de Vento Seco. A existência de Ayla e do colega, interpretado por Henrique Bulhões, transmitem um discurso por si próprios.

Pássaro Memória segue esta trajetória autoral que consiste em aliar a extrema artificialidade (a dança do musical, o plano fixo da abertura, onde os personagens entram e saem numa coreografia precisa) e o despojamento de uma mulher que simplesmente passeia pela rua, perguntando pelo pássaro perdido. A dança segue crua, dessaturada, mesmo dessincronizada: o diretor prefere os gestos crus, nada espetacularizados do musical-evento. 

O espectador se sente o único a testemunhar estes instantes ignorados pelos demais — nenhum passante ao acaso assiste à dança de Lua, assim como nenhum espectador se encontrava na plateia do Teatro Municipal para o pas de deux de João. As figuras invisíveis continuam invisíveis, ainda que possam sonhar. Algumas conseguem fugir — caso de Memória, deixando a cidade, justamente, sem lembranças, sem consciência, sem senso crítico. Uma cidade literalmente esvaziada. O Rio de Janeiro do cineasta parece ainda não ter despertado de um sonho doce, nem retomado as atividades desde a pandemia de Covid-19. Martinelli segue explorando o potencial poético dos musicais tristes.

Pássaro Memória (2023)
7
Nota 7/10

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