Presa a um universo mágico, Sofia (Giovanna Grigio) se vê cercada por irmãs adotivas, em especial uma que a despreza e tenta sabotá-la. No entanto, o príncipe mais cobiçado do reino tem olhos apenas para a forasteira, chegando num cavalo branco para resgatá-la — tal qual a história da Cinderela. Fora de seu mundo natural, a garota que abandona sua vida para ficar com o homem de outra natureza precisa aprender a falar, se vestir e se portar como os locais — exatamente como a Pequena Sereia. Presa no alto de uma torre, a garota indefesa deve recorrer à ajuda do príncipe que a espera lá embaixo — a exemplo da Rapunzel.
Perdida decorre de um imaginário romântico diretamente inspirado nas fábulas clássicas. Longe de esconder suas origens, ele ainda incorpora um misto da rebeldia de Jane Austen, com foco na trama de Orgulho e Preconceito, que norteia a busca desta Elizabeth Bennet brasileira por seu Fitzwilliam Darcy. Por isso, não se surpreende que, apesar das dificuldades, ambas as figuras permaneçam juntas no final. Isso não é um spoiler, apenas uma promessa da própria obra, construída para o final feliz, oferecendo ao espectador exatamente o prometido.
“Final feliz é coisa de livro”, afirma um diálogo inicial. “Ninguém aguenta mais essas historinhas de finais felizes”, contesta-se. Assim, a personagem fascinada por Austen, porém descrente no amor, passará por uma terapia de choque. Através do trauma proposital causado por uma “safada madrinha”, aprende que a entrega incondicional ao amor romântico corresponde ao único propósito digno da vida de uma moça. Esqueça as heroínas modernas, empoderadas, autônomas. O filme dirigido por Katherine Chediak Putnam, Dean W. Law e Luiza Shelling Tubaldini, baseado no livro de Carina Rissi, sonha com um retorno ao tempo em que as mocinhas abriam mão de suas vidas para ficar com o rapaz musculoso.
Sofia luta para se mostrar moderna, rebelde, questionadora do sistema. Mas a trama determina que a sanha progressista da mocinha constitui mera falta de amor.
Pode-se falar, portanto, numa viagem essencialmente reacionária. Sofia luta a trajetória inteira para se mostrar independente e questionadora do sistema. Transportada magicamente a este universo anglo-saxão onde todos falam português, em pleno século XIX, ela veste um casaco de couro sobre o vestido de alças; rejeita a necessidade de se casar; orgulha-se de ganhar dinheiro com o próprio trabalho. As damas ao redor a observam, horrorizadas. Adivinha o que acontecerá depois? A trama determina que a sanha progressista da mocinha constitui mera falta de amor. Basta lhe oferecer um moço disputado e a promessa de felicidade eterna para que ela abandone o trabalho, abra mão da família e dos amigos para fazer morada no universo de fantasias.
A fábula sobre uma feminista domesticada, convertida em bela, recatada e do lar, desperta inúmeros questionamentos de ordem política e social. Como um grande estúdio aceitaria sem modificações esta lição de vida? Que mensagem tal projeto busca passar às garotas jovens, e às leitoras do best-seller? Neste momento, percebe-se que a única ideologia defendida pelas grandes produtoras é aquela da lucratividade: se alguma obra de caráter progressista pode render lucros, será produzida e incentivada. Se, no dia seguinte, os ventos levarem às obras antifeministas, estas serão privilegiadas, e assim por diante. Seria ingenuidade esperar coerência política dentro deste sistema.
Ressalvas à parte, Perdida possui méritos consideráveis. A trinca de diretores possui bom ritmo para a comédia, algo que costuma escapar às produções familiares. O bom elenco, escolhido a dedo para seus personagens, extrai o melhor deste universo codificado, sem ridicularizá-lo. Giovanna Grigio e Bruno Montaleone se prestam com facilidade ao faz-de-conta de uma Austen abrasileirada. Talvez a obsessão de ambos por representar o desejo sexual com os lábios entreabertos pudesse ser contida pela direção (ele passa a quase totalidade das cenas com a boca aberta, projetada), no entanto, a atriz brinca a contento com as gírias e expressões de uma garota moderna. O humor nasce do confronto entre o clássico e o contemporâneo, quando ela reproduz falas típicas do século XXI num contexto que desconhece tais expressões.
É inteligente que a comicidade nasça do confronto de costumes, ao invés de trapalhadas físicas e elementos externos à trama, como tipicamente se produz no humor popular. Luciana Paes sempre constitui um excelente acréscimo às narrativas pitorescas, brincando com a persona da bruxa ao aplicar a desenvoltura que lhe é peculiar. Lucinha Lins também se delicia com a figura da avó conservadora, horrorizada com as práticas estranhas da forasteira. Apenas Hélio de la Peña, tentando se afastar da imagem da comédia, compõe um médico rígido até demais, desprovido de variações de entonação ou objetivos.
A propósito da grande presença de personagens negros, Perdida aprende com Bridgerton a necessidade de reimaginar a História com pessoas negras em posição de poder — com o grande diferencial de que, aqui, estes indivíduos permanecem na condição de coadjuvantes, enquanto os heróis ainda são brancos, belos, padronizados. Esta pequena subversão contida simboliza o projeto na totalidade: ele deseja possuir a aparência de uma obra descolada, moderninha, para ocultar a submissão feminina ao homem dos sonhos. Busca, desta maneira, agradar a progressistas e reacionários, acreditando que, por soltar os cabelos de uma garota negra e lhe oferecer um casaco do couro, a regressão da heroína será compreendida enquanto ato e coragem. Aparente, a maior revolução para uma mulher se encontra na entrega ao amor.
Ao final, entre tantas produções concebidas para a televisão, o resultado se sobressai por uma questão de ritmo e profissionalismo da produção. A trama brinca com códigos alheios à cultura brasileira, porém salientando este aspecto para finalidades de ironia. Em consequência, produz um pastiche sem ridicularizar o original, conseguindo funcionar, ao mesmo tempo, enquanto romance e paródia de romance. Caso mantivesse essa coragem até o final, atingiria patamares ainda mais altos dentro no cinema popular e adolescente (um nicho potencialmente lucrativo, e pouco explorado pela cinematografia nacional). Entretanto, contenta-se em avançar um passo, no início, para recuar outro, ao final. Os criadores sabem muito bem qual forma de cinema pretendem transmitir, ainda que não demonstrem igual certeza no que diz respeito à visão de mundo.