Os últimos anos trouxeram à tona um termo relativamente novo às discussões políticas, ainda que decorrentes de práticas antigas: a necropolítica. Ela se define pela política de deixar morrer, ou estimular a morte, de pessoas pouco úteis ao capital. O Brasil se tornou um exemplo claro deste conceito, com um presidente que atrasou a compra de vacinas durante uma pandemia, pedia a todos para voltarem às ruas durante o auge da doença e sempre desprezou os mais pobres. Os empresários precisam manter sua margem de lucros, portanto, faça o favor de sacrificar sua vida em nome da rentabilidade alheia.
Plano 75 representa esta questão de maneira mais poética e melancólica, apesar de igualmente brutal. Na fábula criada pela cineasta Chie Hayakawa, o Japão implementa a medida sugerida no título, onde os idosos acima de 75 anos podem se voluntariar a uma eutanásia gratuita para não encarecer os cofres públicos com a previdência. Num país com a população “que mais envelhece no mundo”, segundo os letreiros, a proposta se reveste de um ar de prudência e responsabilidade fiscal. “Os japoneses têm a tradição de se sacrificar em nome do bem comum”, relembra um adolescente chantagista, na forte cena de abertura.
O terço inicial da narrativa se dedica a construir o aspecto de normalidade do absurdo, graças à implementação desta política. Os brasileiros podem enxergar nesta distopia um parentesco com nosso recente Medida Provisória (2020), que se apropriava de nossa ferida mais profunda (a escravidão e o racismo decorrente dela) para sugerir as medidas possíveis de um governo tirânico. Em nosso caso, Adriana Esteves representava a “normalidade”, o caráter de favor prestado aos negros pela expatriação dos mesmos à África. No equivalente japonês, Hayato Isomura assume a figura do burocrata gentil, que acredita estar fazendo um favor a todos.
A narrativa se contenta com a apresentação desta medida política: pouco é construído para justificar uma sociedade onde a lei extrema pudesse ser adotada.
Entretanto, a narrativa se contenta com a apresentação desta medida política: pouco é construído para justificar uma sociedade onde a lei extrema pudesse ser adotada. Como se encontrava o Japão no instante da votação? Como isso se transmite nas comunidades, nos bairros, nas conversas nas ruas? Ora, o roteiro prefere se focar em quatro pessoas diretamente afetadas pelo caso: a mulher idosa que, em crise financeira, acata o plano 75, a enfermeira cuidando dos pacientes, o representante do governo e uma assistente social encarregada de fornecer apoio aos aplicantes e convencê-los a permanecer no plano.
Assim, a medida controversa se converte em meio e finalidade da discussão, ao invés de um meio para uma discussão mais ampla. As imagens estão repletas de panfletos e catálogos do plano 75, e o som é tomado pela propaganda em vídeo desta medida na televisão. A cineasta possui dificuldade em se afastar de sua metáfora para enxergá-la com senso crítico e com o devido horror que ela inspira. Fala-se nesta medida o tempo inteiro (Você aceitaria? Não aceitaria?), algo que de certo modo limita seu potencial narrativo — afinal, compreender a sociedade que acata tal chantagem seria muito mais interessante do que se debruçar no passo a passo do plano em si. O foco soa levemente desviado de seu propósito político.
A estrutura coral, com quatro protagonistas, também perde em coerência e consistência. A trama pende em favor da senhora idosa (Chieko Baisho), dedicando menos tempo e importância aos demais, numa exposição pouco equilibrada. Os dilemas da imigrante filipina com sua filha doente, e da atendente em súbita crise moral em relação ao próprio trabalho (algo que surge apenas no último terço) ficam em segundo plano em relação à verdadeira heroína da trama. Caso a jornada assumisse esta senhora como protagonista, investigando as origens de sua solidão, a relação conflituosa com os filhos ausentes e com a falta de trabalho, poderia se aprofundar na discussão, em chave metonímica. A pretensão de abraçar todos os lados da equação (jovens e idosos, da sociedade civil ou do governo, conservadores ou progressistas) transparece a dificuldade em dar igual atenção a todos.
Mesmo assim, os atores estão bem em seus papéis, ainda que todos sejam dirigidos em tons muito semelhantes. Prevalece o comedimento, o silêncio face à opressão estatal, numa forma bastante passiva de acatar a lei supostamente polêmica. Alguns tomates são jogados contra um cartaz do plano 75, por pessoas fora de quadro, sem rosto nem voz, e que jamais retornam. É curiosa a decisão de enxergar estes indivíduos, em igual medida, como vítimas respeitosas e pesarosas dos atos bárbaros. A presença de um destes manifestantes traria um pouco mais de equilíbrio ao tom funesto do percurso.
Ao menos, a cineasta comprova o domínio desta forma de cinema de observação. Ela adota uma atmosfera solene, de cores bege, e aparência de cotidiano banal. Os enquadramentos com profundidade de campo limitada, os rostos de olhares baixos e tristes compõem uma espécie de sonata triste a um país em perda de valores, tanto pela adoção deste plano segregacionista, quanto pela incapacidade de se voltar contra ele. Para o bem ou para o mal, Hayakawa observa o caos com a doçura e a compostura de um violinista do Titanic que segue tocando sua composição conforme o navio afunda.
No terço final, o silêncio ameaça se transformar em horror, expondo os limites éticos destas ideias. Se os dois terços iniciais brincavam com a ideia da morte, a conclusão se dedica a concretizá-la. O filme enfim adquire um caráter pesado, provocador, incluindo uma belíssima cena do olhar cúmplice e apavorado entre dois idosos, esperando para receberem suas doses letais — a distopia finalmente se concretiza. Mas já é tarde: a cena de desfecho retorna à ternura do pôr do sol, do plano estático, da canção entoada em off. O filme prefere ser doce e sonhador a apontar dedos e ir ao fundo de sua magnífica e terrível premissa.