Nyad (2023)

O fetiche do real

título original (ano)
Nyad (2023)
país
EUA
gênero
Drama, Biografia, Esporte
duração
121 minutos
direção
Jimmy Chin, Elizabeth Chai Vasarhelyi
elenco
Annette Bening, Jodie Foster, Rhys Ifans, Anna Harriette Pittman, Luke Cosgrove, Jeena Yi, Karly Rothenberg, Eric T. Miller, Ethan Jones Romero, Garland Scott
visto em
Cinemas

Diana Nyad conquistou a proeza de nadar 177 km, entre Cuba e a Flórida, passando mais de dois dias inteiros em alto mar. Ninguém apostava que a nadadora conseguiria tal feito, por ser mulher, por ter 64 anos, por ter abandonado os treinos profissionais há décadas, por conviver com o trauma de um abuso sexual. Entretanto, após quatro tentativas falhas, tornou-se a primeira pessoa a atingir este objetivo em toda a história. Hoje, faz aparições na televisão e em eventos, encorajando indivíduos comuns a acreditarem em seus sonhos, e a nunca desistirem.

Este mote também domina o discurso da Netflix na hora de transpõe a trama ao cinema de ficção. O espectador inicia a sessão sabendo que a protagonista terá sucesso na empreitada — afinal, os criadores jamais dedicariam tanto tempo e dinheiro à história de alguém que fracassou. Portanto, o longa-metragem se baseia no conforto da previsibilidade: nós sabemos como esta aventura termina. O material de interesse, aos atores e à equipe por trás do filme, reside no árduo processo permitindo chegar à conclusão conhecida.

De certo modo, a fascinação crescente do streaming por episódios reais, sejam eles positivos (façanhas esportivas, como Nyad e As Nadadoras) ou negativos (assassinos em série e tragédias familiares) repousa na garantia de uma recompensa anunciada. Sabemos que as jovens sírias competiram nas Olimpíadas; que a morte por trás de A Escada deixou pontos sem resolução; que o golpista do Tinder permanece em liberdade, e sem punição por seus crimes. A quem não tiver os detalhes, uma rápida consulta ao Google esclarece os pontos básicos.

Quanto mais próxima a ficção chega do original (imagens de arquivo surgem para a comparação), mais o real se converte em fetiche.

Estas iniciativas corresponderiam à compreensão do porquê e do como, ao invés de o quê aconteceu. Ora, como nascem as exceções? Por que um homem mataria a esposa adorada, por que uma mulher idosa passaria mais de 50 horas nadando em alto mar? Por que eles desejaram fazer algo que ninguém mais faria? Surge uma fascinação (mórbida? perversa? fetichista?), pelo outro, pelo diferente, por aquele que foge à regra. Posto que os padrões de idade, de gênero e de classe são tão fortes, o que possibilita as eventuais fugas às imposições sociais?

Ironicamente, casos excepcionais como estes apenas reafirmam sua (quase) impossibilidade de existir. Em outras palavras, a conquista de Nyad representa a exceção que confirma a regra. É dificílimo atravessar Cuba a Estados Unidos a nado. As frases que permeiam toda a narrativa, do tipo “basta acreditar” e “nunca desista dos seus sonhos”, servem de triste lembrança que Nyad foi capaz de tal travessia por ser diferente de todos nós

Não, todos não podemos nadar 177 km caso queiramos muito. Não basta acreditar, querer, treinar muito, ter dinheiro e apoio logístico. Inúmeros sonhos jamais se realizarão. Existe uma contradição fundamental em se apropriar da exceção enquanto exemplo perfeitamente passível de aplicação a todos. Nem todas as meninas sírias competirão nas Olimpíadas, aliás, a vasta maioria passará longe desta marca. A dificuldade extrema da façanha de Nyad acaba revelando que, estatisticamente, a chance de outras pessoas reproduzirem o feito são ínfimas. 

Mesmo assim, o longa-metragem se pretende inspirador, encorajador. A trilha sonora de violinos irrompe a cada braçada na água; as decisões de nova tentativa são enquadradas com close-ups no rosto feroz da atriz; os planos aéreos do mar aberto e infinito sublinham a coragem da heroína. Annette Bening e Jodie Foster (nos papéis da nadadora e de sua melhor amiga e treinadora) encarnam estes papéis com respeito, além de um senso de responsabilidade imenso. Elas adotam a gravidade da travessia, o caráter sepulcral do recorde que possuem em mãos. “Silêncio: a História está sendo escrita”, lembram uma dúzia de cenas de frio, fome, câimbras, perigos com animais marinhos, cansaço, etc. 

Após o “padrão Globo de qualidade”, temos hoje o padrão Netflix de qualidade. Trata-se de produções competentes, endinheiradas, marcadas por imagens nítidas, bem iluminadas, coroadas por uma obrigatória narração em off (aqui, proveniente dos repórteres reais que seguiram os esforços da atleta) explicando os dilemas, os objetivos, os receios. Estão ausentes as ambiguidades, as sequências provocadoras, perturbadoras, de duplo sentido. É preciso que o resultado seja “profissional”, mas também inofensivo. 

Não há zonas ambíguas no retrato desta mulher, em termos de ética ou moral. Sua homossexualidade surge num diálogo sutil, para agradar aos progressistas, mas permanece oculta em seguida, para acalmar os conservadores. Denuncia-se a pedofilia de que foi vítima, para aplacar a vontade dos fãs de crimes reais, porém em cores quentes, com um curioso filtro dourado, para não incomodar a visão daqueles que desligariam a televisão diante de um ato de violência. A difícil obtenção do dinheiro necessário à travessia aparece de passagem, para garantir a fidelidade aos fatos, embora sem entrar em detalhes, para não cansar o espectador ansioso apenas pelas imagens em alto mar. 

A escolha de dois cineastas provenientes do documentário surte bons frutos. Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi começam a trama com a imagem real de Diana Nyad, algo raro para biografias do tipo — em geral, o material verídico do biografado surge apenas na conclusão, junto aos obrigatórios letreiros explicativos. A fala verídica da nadadora entrecruza toda a narrativa, comentando os desafios enfrentados no processo. Cenas da jornada real, em digital de baixa qualidade, são alternadas com o digital em altíssima qualidade e baixa granulação/pixelização, correspondentes à filmagem atual. Poucas biografias abraçam de maneira tão assumida e generosa o material de arquivo.

Por outro lado, a dupla ainda se rende às estratégias óbvias de comoção, traduzidas na insistência pela trilha sonora, nos letreiros que repetem a idade de Nyad a cada tentativa (os autores acham fundamental nos lembrar de que ela é velha demais para esta tarefa), nos diálogos e frases de estímulo. “O que você pretende fazer com sua vida selvagem e preciosa?”. “Cadê a excelência?”. “Um diamante é apenas um pedaço de carvão que não desistiu”

Isso sem falar nos fraquíssimos flashbacks da juventude, relacionados ao abuso da adolescente, e na relação mal explicada (endeusada a princípio; esquecida a seguir) com o pai, com o fato de ter sido adotada, etc. Mencionam-se questões sociais ou psicológicas apenas para dizer que estão presentes (“Está vendo? Eu não me esqueci da homossexualidade, do estupro, da origem estrangeira”). No entanto, nenhum destes elementos se desenvolve. Ironicamente, a Netflix possui receio que a realidade tão procurada roube os holofotes da idealização da travessia.

Annette Bening e Jodie Foster estão competentes num registro confortável até demais, marcado por poucas variações de tom ou contradições. Rhys Ifans, num papel menor, talvez conquiste a parcela de doçura que não se permite às mulheres (para que ainda sejam vistas como fortes e destemidas). Ao final, tudo está em seu lugar, e a obra cumpre o prometido. Encontramos no filme exatamente o que se esperaria dele, para o bem ou para o mal.

Seria despropositado reclamar da falta de ousadia, de ambições cinematográficas e narrativas de uma obra concebida apenas para festejar Nyad, não para questioná-la ou refletir a partir dela. Ao final, quanto mais próxima a ficção chega do original (imagens de arquivo surgem para a comparação), mais o real se converte em fetiche. O cinema deixa de se tornar representação para se tornar apreensão, reprodução do mundo — contanto que possamos extrair dos fatos apenas aquilo que nos interessar, é claro.

Nyad (2023)
6
Nota 6/10

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