Possessão Suprema (2024)

Experimental não é bagunça, não

título original (ano)
Posesión Suprema (2024)
país
Colômbia
linguagem
Experimental (?)
duração
70 minutos
direção
Lucas Silva
elenco
Victor Simarra, Leonel Torrres, Rosalio Salgado, Marcial Canate
visto em
18º CineBH (2024)

A sinopse oficial nos avisa que os moradores do Palenque de San Basilio (Colômbia), primeira cidade livre das Américas, encenam a origem deste povoado para as câmeras. Dedicam-se especialmente a homenagear a figura de Benkos Biohó, guerreiro escravizado a quem se atribui a fundação do local. Logo, teríamos uma encenação com não-atores, misturando documentário e ficção, em formato bastante comum, tanto nas produções de baixo orçamento quanto nos filmes selecionados em festivais de cinema.

No entanto, a experiência em tela está muito longe da clareza e organização sugerida pela descrição acima. Durante 70 minutos, meia-dúzia homens negros (incluindo uma criança pequena) divertem-se diante do dispositivo. Correm de um lado para o outro, vestem-se com folhas de bananeira, gritam “Benkos!” dezenas de vezes, declaram-se irmãos do personagem. Jogam terra na cabeça alheia, repetem alguns mantras incompreensíveis. Caem no chão, abraçam-se, andam pelas matas.

Em nenhum momento o longa-metragem parece ter roteirizado, ensaiado, estimulado e coordenado as ações à sua frente. Os protagonistas agem por impulso, porque podem, e porque existe um homem disposto a captar qualquer atividade que se desenvolva ali. A montagem — o único elemento verdadeiramente possuído na obra — alterna os fragmentos com uma liberdade aleatória. Repete cenas; interrompe frases pela metade; passa do colorido ao preto e branco, e ao colorido de novo; retorna a sequências iniciadas muitos minutos mais tarde. Desestrutura-se pelo prazer de fazê-lo.

Passados quarenta, cinquenta minutos, o espectador ainda pode questionar exatamente o que está vendo, por que estaria vendo tais traquinagens, e o que o autor pretenderia transmitir a partir de tudo aquilo.

Neste sentido, Possessão Suprema assume seu aspecto caseiro, amador, malfeito. A textura em baixa qualidade sugere uma captação digital de poucos recursos. A câmera na mão treme para qualquer lado, enquanto a fotografia aposta na luz natural e em gestos igualmente decididos no calor do momento, mimetizando o transe de seus protagonistas. Se os atores adotam uma espécie de coreografia caótica, o diretor Lucas Silva os acompanha neste “palco”, inclusive ajustando as lentes olho-de-peixe durante a duração de um plano — novamente, pelo simples direito de fazê-lo. 

Passados quarenta, cinquenta minutos, o espectador ainda pode questionar exatamente o que está vendo, por que estaria vendo tais traquinagens, e o que o autor pretenderia transmitir a partir de tudo aquilo. Sim, a posteriori, seria possível pinçar, aqui e acolá, instantes em que os homens mencionam algo talvez compreendido enquanto evocação de fatos históricos (que precisariam ser, de alguma forma, contextualizados na sociedade e política da época). No entanto, em pleno turbilhão de estímulos, a obra propõe como única consistência a sua inconsistência perene, da primeira à última cena.

Por falta de melhor terminologia, recebe a classificação de “experimental” — espécie de “nenhum dos anteriores” na múltipla escolha das terminologias cinematográficas. Quando não se sabe o que fazer com uma iniciativa estranha, apela-se ao rótulo exótico, ainda que, no senso estrito do termo, Silva não proponha nenhuma experimentação de imagem, narrativa ou discurso digna deste nome. As iniciativas deste filão costumam ser associadas a um estudo de formas, um desejo conceitual de subverter estruturas ao promover novas formas de olhar. Nada disso ocorre em Possessão Suprema.

O cineasta apenas demonstra, ao longo desta “narrativa” — que nunca realmente conta uma história, nem articula um pensamento coerente a respeito de Benkos Biohó e a liberdade nas Américas — sua dificuldade em produzir sentido e se comunicar com o espectador. Nota-se um deleite extremo em bagunçar os padrões do storytelling, porém nenhum interesse em construir algo a partir dos escombros. O gesto cinematográfico se assemelha a uma criança que adora destruir castelos de cartas, mas depois deixa o baralho espalhado pelo chão, e se recusa a construir a pilha novamente. A noção de brincadeira se aproxima desta malícia juvenil, esta revolta sem se saber exatamente contra o quê, e muito menos o quê proporia enquanto alternativa.

Um dos argumentos mais comuns para defender, ou pelo menos atenuar as falhas deste tipo de obras, reside em seu baixo orçamento. O diretor contava certamente com recursos limitadíssimos, então deveríamos “dar um desconto”, correto? Ora, a restrição estrutural nunca foi desculpa para um cinema desinteressado pelas imagens, pela narrativa ou pelo discurso — vide o trabalho rigoroso e estimulante de cineastas brasileiros como Adirley Queiróz, Affonso Uchôa, João Dumans, Cris Ventura e Juliana Antunes, para citar alguns. O experimental, enquanto pesquisa de linguagem, nunca foi sinônimo de qualquer-coisa-vale.

Ao final, argumentou-se pelos corredores do CineBH que o resultado possui uma abordagem pessoal e única. Difícil discordar de tal afirmação. Em meio a tantos projetos latino-americanos “corretos”, representando a miséria de algum povoado vista pelo prisma típico do realismo social, visando cativar festivais, Possessão Suprema não parece preocupado em agradar a ninguém além de si mesmo. Talvez o espectador saia da sessão conhecendo pouquíssimo a respeito do lugar, das pessoas e dos fatos livremente evocados. Ele se deparará com uma investigação estética tão magra que teimaria em honrar este nome. Mas verá uma forma de autoria pessoal e debochada, feita não para o público, mas apesar dele.

Possessão Suprema (2024)
4
Nota 4/10

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