Quem É Essa Mulher? (2024)

A pesquisa dos outros

título original (ano)
Quem É Essa Mulher? (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
70 minutos
direção
Mariana Jaspe
com
Mayara Priscila de Jesus
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Cinema

Em 2020, a diretora Viviane Ferreira lançou nos cinemas Um Dia Com Jerusa, projeto que visava entregar um papel de destaque a Léa Garcia, na forma de homenagem a uma das pioneiras que abriu o caminho para demais artistas negras no audiovisual brasileiro. Em 2022, Juliana Vicente traçou um caminho semelhante dentro da estrutura documental, em Diálogos com Ruth de Souza. Durante muitos anos, as duas mulheres negras se encontraram, compartilharam experiências. Começaram, assim, a preencher uma imensa lacuna de representatividade histórica e política.

Quem É Essa Mulher?, de Mariana Jaspe, continua este percurso, numa triangulação entre a cineasta, a historiadora Mayara Priscila de Jesus, e a presença ausente de Odília Teixeira Lavigne, “a primeira médica negra do Brasil”, conforme atestam os letreiros iniciais. Ainda que não apareçam diante das câmeras, as cineastas também se convertem em personagens, espelhando seus corpos e suas identidades no cinema, ocupando as imagens, dominando o discurso, determinando o ponto de vista. 

Existe um bem-vindo senso de reparação histórica nestes projetos, destituídos de acusações fervorosas contra os responsáveis pelo machismo e racismo estruturais, ou contra aqueles que contribuem à sua manutenção. As cineastas preferem a via do afeto, estabelecendo óbvia relação filial com as mulheres idosas que lhes servem de inspiração. Jaspe já havia realizado, por exemplo, o curta-metragem Deixa (2023), estrelado por Zezé Motta, enquanto Sabrina Fildago convidou Elisa Lucinda para interpretar Deus em Alfazema (2019).

O ponto de vista depende inteiramente do que a historiadora tem a oferecer. Mesmo o slogan “a primeira médica negra do Brasil” se justifica somente num trecho desconexo, jogado enquanto nota de rodapé durante os letreiros finais.

No caso do filme de 2024, a cineasta acompanha a pesquisa da jovem historiadora baiana, que busca informações acerca da personagem/biografada. Como Odília teria conseguido se inscrever numa faculdade de medicina? De que maneira foi aceita no meio majoritariamente branco e masculino? O que a levou a estudar temas raramente explorados por alunas mulheres, como as cirroses? Por que o nome da mãe era escondido dos documentos oficiais, e o que a levou a abandonar a prática médica em nome do casamento? 

Apenas parte destas questões encontra uma resposta no documentário. A cineasta faz da pesquisa alheia uma finalidade em si própria, efetuando poucas investigações por conta própria. O ponto de vista depende inteiramente do que a pesquisadora tem a oferecer. Mesmo o slogan “a primeira médica negra do Brasil” se justifica somente num trecho desconexo, jogado enquanto nota de rodapé durante os letreiros finais. Neste momento, a autora não considera importante acompanhar a pesquisa de Mayara em outros Estados brasileiros, capaz de sustentar a hipótese tão importante.

Enquanto minimiza a investigação própria, o projeto se concentra na vida afetiva da historiadora. A câmera se volta ao primeiro encontro desta com o namorado, acompanhando o beijo do casal ao pôr do sol. Registra os almoços em família, quando as tias relembram, orgulhosas, da graduação universitária da jovem. Nestes instantes, o dispositivo se presta a uma dinâmica estranhamente artificial, quando dois personagens conversam, supostamente um com o outro, compartilhando informações de que ambos dispõem.

Estas conversas se multiplicam ao longo da trama. Mãe e filha recordam episódios da infância, no intuito de informar o espectador e a cineasta. Falam uma com a outra na terceira pessoa, como se a interlocutora não estivesse logo ali, na sua frente. Isso ocorre igualmente entre namorada e namorado, ou com a colega, também historiadora. “Quando você foi fazer o doutorado sanduíche nos Estados Unidos…”. Ora, a interlocutora desconhecia seu próprio percurso acadêmico? Professora e aluna relembram a monografia de Mayara, comunicando à outra alguma passagem que esta afirma recordar muito bem. Trata-se de uma ferramenta bastante confusa em termos conceituais.

Enquanto isso, a montagem apela a recursos desgastados para a transição entre sequências. Uma trilha sonora de dedilhados sentimentais se repete nas passagens, enquanto imagens genéricas da cidade ou das estradas se sucede, para preencher o tempo de fala dos entrevistados. No entanto, poderiam ser substituídas por qualquer outro stablishing shot, ou reorganizadas em ordem distinta, sem qualquer prejuízo ao resultado, posto que acrescentam pouco à contextualização ou ao significado.

Por fim, Quem É Essa Mulher? carrega sobretudo o valor retórico de sua existência, e aquele das informações extrafílmicas apresentadas ao espectador. Quantas pessoas conheciam o percurso de Odília? Aos poucos, as lacunas históricas a respeito do pioneirismo e do trabalho de mulheres negras começa a se preencher. Pontos sobretudo para Mayara, cuja pesquisa historiográfica se prova de imensa relevância. Já a cineasta, em sua pesquisa estética, alcança resultados mais modestos.

A experiência da obra ainda foi prejudicada por uma sessão onde as imagens se congelavam, “flicavam”, despertando a curiosa impressão inicial de uma opção de linguagem, até se confirmar enquanto pequeno defeito de projeção. Ainda falta a inúmeros documentários brasileiros a compreensão de que a nobreza do tema não compensa uma pretensa humildade artística. Muitos criadores estimam que, quanto mais importante é seu objeto de estudo, menor se torna a necessidade de trabalhá-lo por meio de uma estética estimulante. As melhores biografias ainda são aquelas efetuadas com os biografados, ao invés de sobre eles.

Quem É Essa Mulher? (2024)
4
Nota 4/10

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