Raquel 1:1 parte de um início bastante forte. A garota e seu pai se mudam para uma cidadezinha, no entanto, nada nos diálogos, nem nas ações explica os motivos exatos deste “recomeço”, nas palavras dela. Seria comum que elementos didáticos detalhassem ao espectador o passado de ambos, sua relação com a religião, a ausência da mãe, e a escolha de novos rumos profissionais. Ora, a diretora Mariana Bastos acredita na inteligência de seu espectador, ocultando todos os fatos que podem ser deduzidos, ou compreendidos com o andar da trama.
A introdução da fé neste caldeirão microssocial também surge de maneira progressiva. A jovem carrega uma Bíblia na bolsa, e símbolos religiosos se multiplicam pelas paredes, enquanto a trilha sonora garante que terços e quadros de Jesus Cristo constituem motivos de tensão. O acolhimento na igreja local ocorre com tamanha rapidez que se percebe a pressa dos criadores em fazer as coisas darem errado. A jornada prefere começar de uma perspectiva otimista (casa nova, comércio arrumado, amigas gentis) para então desvendar o conservadorismo predatório das cidadezinhas de interior.
A missão da heroína soa menos realista do que simbólica. Certa de que a Bíblia necessita de uma atualização por mãos femininas, decide se encarregar do empreendimento sozinha, e depois, junto a um pequeno grupo de garotas. Onde ela pretende chegar com esta ousada abordagem das escrituras cristãs? Nunca pensou em buscar apoio de figuras contestadoras da religião, a exemplo do próprio pai? Esperava sinceramente que a colega fanática aceitasse sua proposta sem contestar? Há um misto de coragem e ingenuidade nas atitudes de Raquel (Valentina Herszage).
Neste aspecto, o projeto começa a apresentar algumas falhas. Se, por um lado, é louvável que o roteiro nunca se renda à pedagogia de dados e informações, por outro lado, ele se ressente de uma contextualização e aprofundamento psicológico. Em outras palavras, acompanhamos o drama de um ponto de vista externo aos personagens. O olhar não se confunde nem com o olhar da adolescente, nem do pai, e muito menos das amigas. Testemunhamos com certa estranheza e distanciamento as suas atitudes misteriosas. Ela nunca se torna clara para o público.
Os indícios do cinema de gênero estão presentes, ainda que de maneira discreta, evitando o asco e o incômodo tão propícios ao horror.
A relação contestadora em relação à fé parece nascer de um violento caso de feminicídio na família, porém o filme evita estabelecer uma relação determinista de causa e consequência. Que objetivos Raquel possui para o futuro? O que gostaria de estudar? Como lidou com a perda da mãe no passado, e por que as terapias tradicionais fracassaram? Que relação esta garota possui com o sexo, o corpo, o desejo? De onde vêm as sombrias ilustrações num caderno? Herszage efetua um trabalho contido de expressividade, de modo a preservar as dúvidas.
A diretora investe então em alguns caminhos que têm se tornado tão férteis quanto previsíveis no cinema brasileiro: as metáforas do horror para ilustrar a opressão feminina. O corte inesperado no abdômen da garota poderia se tornar um elemento forte, caso fosse aprofundado. A banheira se enche de sangue durante o banho, aludindo à menstruação, ao sangramento da ferida e aos gestos mágicos dessa possível profetisa ou bruxa. Os indícios do cinema de gênero estão presentes, ainda que de maneira discreta, evitando o asco e o incômodo tão propícios ao horror.
As melhores escolhas de perturbação estética provêm do som. Ao invés de flashbacks tradicionais com o espancamento, sequestro e morte da mãe nas mãos de um namorado abusivo, o roteiro prefere reconstituir o caso inteiro via sons relembrados pela jovem, no presente. Esta é uma bela solução, cuidadosamente diluída pelo roteiro ao longo da narrativa. Às vezes, conversas em fundo de quadro se tornam inaudíveis, quando Raquel está concentrada demais em seus tormentos pessoais. Brigas com a colega carola também dispensam o som: percebe-se e compreende-se, pelos gestos de cada atriz, o conteúdo da discussão.
Em contrapartida, a direção de fotografia se mostra mais conservadora e pudica do que a construção sonora. Raquel 1:1 está repleto de planos mecânicos e impessoais obtidos através de drones, erguendo-se ao céu ou retornando ao vilarejo, numa forma acadêmica de stablishing shots que pouco acrescentam à história, além de chamarem atenção excessiva ao próprio dispositivo. A garota e o pai Hermes (Emílio de Mello) vivem numa casa inexplicavelmente escura durante jantares e momentos de convivência em plena luz do dia. Planos giratórios na festa tratam de sublinhar algo que o som as atuações já demonstravam de maneira bastante clara.
Felizmente, o conjunto se sustenta através de um tom sóbrio, frio e seguro, que nunca escancara a perversidade da situação. Esta opção chega inclusive a minimizar alguns atos de violência contra a mulher, tratados como secundários. Eles serão esquecidos quando não convêm mais ao roteiro (em especial, o estupro praticado por Gustavo). Mesmo assim, o longa-metragem possui um andamento coeso, além de atuações sólidas, o que também inclui as belas composições de Priscila Bittencourt e Eduarda Samara. Bastos possui talento para conter todos os excessos e afetações do elenco, algo raro em se tratando de jovens atrizes.
No entanto, tamanha contenção acaba por transformar Raquel numa figura estoica em excesso. A garota sofre perseguições, humilhações online, agressões físicas e uma verdadeira caça às bruxas, sem jamais revidar ou tentar fugir deste cenário. Quando seu esconderijo é exposto num jornal, a menina retorna ao mesmo local conhecido por todos. Ciente do risco que corre ao estudar e “modernizar” a Bíblia, continua a fazê-lo, noite após noite, numa reta de obsessão que jamais se traduz em crença fervorosa. Essa resignação beira o fatalismo, a entrega cômoda da presa aos seus algozes. Raquel aparenta aceitar o destino trágico que lhe impõem.
Na conclusão, o filme adota um elemento tornado quase obrigatório nos dramas sociais brasileiros dos últimos cinco anos: o fogo. Bacurau, Fogaréu e Fim de Semana no Paraíso Selvagem também abordam a chegada de uma jovem a uma cidadezinha conservadora. Após a perseguição das gangues violentas do local, a expiação e liberdade da protagonista ocorre por meio do fogo. É preciso que as instituições arcaicas queimem para que algo novo nasça das cinzas. Esta metáfora válida se traduz numa cena eficaz, no caso desta produção. Apesar disso, convém questionar a reincidência destes códigos em espaço tão curto de tempo, perdendo sua potência pela repetição.
Em paralelo, convém questionar a decisão dos distribuidores de lançarem Raquel 1:1 praticamente junto a Medusa, outro filme a respeito de uma garota questionadora sendo atacada por uma gangue evangélica radical que pratica o ódio em cultos neopentecostais. Neste sentido, o drama fica em desvantagem, posto que o trabalho de Anita Rocha da Silveira levava o horror, as atuações e a violência a patamares mais impactantes.
Além disso, a nova estreia se filia igualmente a lançamentos como Divino Amor na visão fabular da tomada da religião nos espaços públicos e nas leis, e a obras como Mormaço e Trabalhar Cansa na construção de feridas repentinas no corpo de mulheres sofredoras. Por fim, a obra se mostra tão competente quanto incapaz de surpreender ou provocar, embora aborde temas explosivos. Trata-se de uma fogueira admirável, ainda que atenuada pela sensação de déjà vu.