Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Meilin encontra-se em sua cama metamorfoseada num gigantesco panda vermelho. A adolescente comportada, contente em tirar as melhores notas da escola e ajudar a mãe nos negócios, descobre-se transformada num animal peludo cujos movimentos não domina. A garota exemplar é confrontada, enfim, à incapacidade de controlar o próprio corpo e as emoções.
Diversos espectadores, e mesmo críticos de cinema, viram na produção da Pixar uma simples “metáfora menstrual”. Afinal, o título original (Turning Red, ou “Virando vermelho”) favorece a aproximação com a imagem do sangue. No Brasil, os distribuidores provavelmente tiveram medo de que o público associasse o projeto à cor do Partido dos Trabalhadores e logo bradasse contra o comunismo, a doutrinação infantil e outros bichos-papões para adultos. (Vale lembrar que Lula, uma personagem de animação, teve seu nome transformado por aqui).
Fobias à parte, a transformação da adolescente num animal avermelhado vai além de simbologias hormonais. Trata-se de algo mais complexo: a diretora Domee Shi faz questão de abordar esta capacidade mágica como uma mistura de privilégio e maldição. Afetando apenas as mulheres da família, a conversão animalesca é passível de contenção caso a pessoa em questão consiga controlar seus sentimentos. Para viver em sociedade, precisam “esconder seus pandas interiores”, tornando-se belas, recatadas e do lar.
Assim, o roteiro aborda a pressão específica depositada sobre as mulheres para trabalharem, cuidarem dos filhos e continuarem atraentes aos olhos masculinos, enquanto aos homens cabe unicamente a tarefa de trabalhar e prover ao lar. O pai de Meilin cozinha mal, aparece pouco, interfere o mínimo possível na criação da garota. São as mulheres que se revestem de uma rígida lista de tarefas e preceitos, sendo igualmente cobradas em espaço público e privado. Já os homens recebem passe livre dentro de suas casas.
A metáfora do panda possui outros contornos dignos de nota. Em contraste com estas mulheres reprimidas, de olhar baixo, educação polida e figura esguia, o bicho representa uma massa peluda, barulhenta e desengonçada, forçando a garota ao limite do autocontrole. O animal combina atrapalhadamente as características da infância e da fase adulta, entra as quais transita a heroína: por um lado, mostra-se gentil, fofo como um bicho de pelúcia, e por outro, possui a força capaz de destruir outro ser humano. Meilin descobre sua autonomia através do alter-ego meio domesticado, meio selvagem.
O texto faz questão de demonstrar que estas características seriam universais, ainda que mais fortes na cultura chinesa, acrescida do receio de não pertencer ao cenário canadense devido à origem estrangeira. As mulheres precisam provar seu valor em terreno adverso, sendo ao mesmo tempo ocidentais e orientais; belas, mas não sexualmente proativas; domésticas, porém capazes de cuidar de um templo sozinhas. O retrato da pressão especificamente feminina ultrapassa as gerações, fazendo com que a mãe se torne criança novamente diante da chegada da avó, igualmente opressora.
Disney e Pixar começam a apresentar sinais de desgaste em suas produções e metáforas.
Com Red: Crescer É uma Fera (2022), a Pixar reforça a vocação de resolver suas histórias recentes dentro de uma única família. O conflito principal dos protagonistas jovens diz respeito ao relacionamento com pais, avós e tios, em reflexo da aceitação do próprio protagonista quanto à sua identidade étnica, racial e de gênero. A cineasta o faz com um universo alegre, polido no tratamento de imagem e som, com poucas ambiguidades ou simbologias para além de easter eggs plantados aqui e acolá. Ela resgata do ano de 2002 a paixão pelos tamagochis e pelas boy bands, apostando numa nostalgia cada vez mais contemporânea.
No entanto, a empresa começa a apresentar sinais de desgaste em suas produções e metáforas. Por mais competente que sejam os recursos de animação e a mistura entre humor e drama (com toques de suspense sobrenatural e fábula fantástica), o longa-metragem repete elementos utilizados à exaustão nos títulos recentes de Disney e Pixar. Luca também se descobria um animal incontrolável na história homônima de passagem à fase adulta de 2021, enquanto a alma de Soul (2020) se convertia em gato e o espírito de Viva: A Vida É uma Festa (2017) se unia àquele de um alebrije.
A história de três gerações de matriarcas austeras numa família mágica, cujo poder se controla através de um ritual com data marcada, decorre diretamente de Encanto (2021). As tramas relacionadas a culturas fora do continente norte-americano se revestem de exotismo, com muitas lendas e dragões, já aquelas relacionadas a americanos apostam num humanismo realista (Divertida Mente, 2015, Up: Altas Aventuras, 2009). Apesar de situado numa cidade de Toronto multicultural e acolhedora, Red ainda enxerga as tradições chinesas pelo prisma de um distanciamento fetichista.
A Disney e a Pixar têm voltado suas últimas produções à cultura alheia: a Colômbia em Encanto; a Itália em Luca; o sudeste asiático em Raya e o Último Dragão; o México em Viva: A Vida É uma Festa. Entretanto, enxergam nestas sociedades uma terra de aventuras infinitas, de perigos e magias incontáveis, distantes da “normalidade” norte-americana. Segue-se demarcando o “outro” em relação ao “nós”, definindo-o por uma singularidade distintiva. As empresas compreenderam a necessidade de trazer diretoras mulheres e asiáticas para um projeto feminino sobre a China, assim como escolheu vozes majoritariamente chinesas ao elenco (com exceção de Sandra Oh, de origem sul-coreana).
No entanto, falta a estes projetos fazer a síntese cultural para além de louvá-las com o fervor de um turista encantado com as belas paisagens, cores e cheiros do país alheio. Falta ultrapassar a representação da alteridade enquanto apenas isso: um território distante e encantador porque diferente do nosso (americano, no caso). Ressalvas à parte, caso Red fosse lançado cinco anos atrás, antes de tantas iniciativas semelhantes, certamente teria um acolhimento mais potente, pois soaria inovador em sua proposta.
Ora, o pobre filme rico, fruto da maior indústria de animação do mundo, sequer ganhou as salas de cinema, sendo lançado diretamente nos serviços de streaming, no momento em que o controle da pandemia já permitia o retorno seguro às salas escuras. A própria Disney trata a obra como um filme menor, sem potencial de premiações. Na época de produtores-distribuidores-exibidores que monopolizam toda a cadeia da criação audiovisual para maximizar os lucros (é a Disney quem faz, comercializa e exibe os próprios projetos), Red se torna sintoma da necessidade de fazer cinema no atacado.