Red: Crescer É uma Fera (2022)

Meu animal interior, mais uma vez

título original (Ano)
Turning Red (2022)
país
Estados Unidos
gênero
Animação, Comédia
Duração
100 minutos
direção
Domee Shi
Elenco
Rosalie Chiang, Sandra Oh, Ava Morse, Hyein Park, Maitreyi Ramakrishnan, Orion Lee, Wai Ching Ho, Tristan Allerick Chen, Jordan Fisher, Finneas O’Connell
visto em
Disney+

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Meilin encontra-se em sua cama metamorfoseada num gigantesco panda vermelho. A adolescente comportada, contente em tirar as melhores notas da escola e ajudar a mãe nos negócios, descobre-se transformada num animal peludo cujos movimentos não domina. A garota exemplar é confrontada, enfim, à incapacidade de controlar o próprio corpo e as emoções.

Diversos espectadores, e mesmo críticos de cinema, viram na produção da Pixar uma simples “metáfora menstrual”. Afinal, o título original (Turning Red, ou “Virando vermelho”) favorece a aproximação com a imagem do sangue. No Brasil, os distribuidores provavelmente tiveram medo de que o público associasse o projeto à cor do Partido dos Trabalhadores e logo bradasse contra o comunismo, a doutrinação infantil e outros bichos-papões para adultos. (Vale lembrar que Lula, uma personagem de animação, teve seu nome transformado por aqui).

Fobias à parte, a transformação da adolescente num animal avermelhado vai além de simbologias hormonais. Trata-se de algo mais complexo: a diretora Domee Shi faz questão de abordar esta capacidade mágica como uma mistura de privilégio e maldição. Afetando apenas as mulheres da família, a conversão animalesca é passível de contenção caso a pessoa em questão consiga controlar seus sentimentos. Para viver em sociedade, precisam “esconder seus pandas interiores”, tornando-se belas, recatadas e do lar.

Assim, o roteiro aborda a pressão específica depositada sobre as mulheres para trabalharem, cuidarem dos filhos e continuarem atraentes aos olhos masculinos, enquanto aos homens cabe unicamente a tarefa de trabalhar e prover ao lar. O pai de Meilin cozinha mal, aparece pouco, interfere o mínimo possível na criação da garota. São as mulheres que se revestem de uma rígida lista de tarefas e preceitos, sendo igualmente cobradas em espaço público e privado. Já os homens recebem passe livre dentro de suas casas.

A metáfora do panda possui outros contornos dignos de nota. Em contraste com estas mulheres reprimidas, de olhar baixo, educação polida e figura esguia, o bicho representa uma massa peluda, barulhenta e desengonçada, forçando a garota ao limite do autocontrole. O animal combina atrapalhadamente as características da infância e da fase adulta, entra as quais transita a heroína: por um lado, mostra-se gentil, fofo como um bicho de pelúcia, e por outro, possui a força capaz de destruir outro ser humano. Meilin descobre sua autonomia através do alter-ego meio domesticado, meio selvagem.

O texto faz questão de demonstrar que estas características seriam universais, ainda que mais fortes na cultura chinesa, acrescida do receio de não pertencer ao cenário canadense devido à origem estrangeira. As mulheres precisam provar seu valor em terreno adverso, sendo ao mesmo tempo ocidentais e orientais; belas, mas não sexualmente proativas; domésticas, porém capazes de cuidar de um templo sozinhas. O retrato da pressão especificamente feminina ultrapassa as gerações, fazendo com que a mãe se torne criança novamente diante da chegada da avó, igualmente opressora. 

Disney e Pixar começam a apresentar sinais de desgaste em suas produções e metáforas.

Com Red: Crescer É uma Fera (2022), a Pixar reforça a vocação de resolver suas histórias recentes dentro de uma única família. O conflito principal dos protagonistas jovens diz respeito ao relacionamento com pais, avós e tios, em reflexo da aceitação do próprio protagonista quanto à sua identidade étnica, racial e de gênero. A cineasta o faz com um universo alegre, polido no tratamento de imagem e som, com poucas ambiguidades ou simbologias para além de easter eggs plantados aqui e acolá. Ela resgata do ano de 2002 a paixão pelos tamagochis e pelas boy bands, apostando numa nostalgia cada vez mais contemporânea.

No entanto, a empresa começa a apresentar sinais de desgaste em suas produções e metáforas. Por mais competente que sejam os recursos de animação e a mistura entre humor e drama (com toques de suspense sobrenatural e fábula fantástica), o longa-metragem repete elementos utilizados à exaustão nos títulos recentes de Disney e Pixar. Luca também se descobria um animal incontrolável na história homônima de passagem à fase adulta de 2021, enquanto a alma de Soul (2020) se convertia em gato e o espírito de Viva: A Vida É uma Festa (2017) se unia àquele de um alebrije. 

A história de três gerações de matriarcas austeras numa família mágica, cujo poder se controla através de um ritual com data marcada, decorre diretamente de Encanto (2021). As tramas relacionadas a culturas fora do continente norte-americano se revestem de exotismo, com muitas lendas e dragões, já aquelas relacionadas a americanos apostam num humanismo realista (Divertida Mente, 2015, Up: Altas Aventuras, 2009). Apesar de situado numa cidade de Toronto multicultural e acolhedora, Red ainda enxerga as tradições chinesas pelo prisma de um distanciamento fetichista.

A Disney e a Pixar têm voltado suas últimas produções à cultura alheia: a Colômbia em Encanto; a Itália em Luca; o sudeste asiático em Raya e o Último Dragão; o México em Viva: A Vida É uma Festa. Entretanto, enxergam nestas sociedades uma terra de aventuras infinitas, de perigos e magias incontáveis, distantes da “normalidade” norte-americana. Segue-se demarcando o “outro” em relação ao “nós”, definindo-o por uma singularidade distintiva. As empresas compreenderam a necessidade de trazer diretoras mulheres e asiáticas para um projeto feminino sobre a China, assim como escolheu vozes majoritariamente chinesas ao elenco (com exceção de Sandra Oh, de origem sul-coreana).

No entanto, falta a estes projetos fazer a síntese cultural para além de louvá-las com o fervor de um turista encantado com as belas paisagens, cores e cheiros do país alheio. Falta ultrapassar a representação da alteridade enquanto apenas isso: um território distante e encantador porque diferente do nosso (americano, no caso). Ressalvas à parte, caso Red fosse lançado cinco anos atrás, antes de tantas iniciativas semelhantes, certamente teria um acolhimento mais potente, pois soaria inovador em sua proposta. 

Ora, o pobre filme rico, fruto da maior indústria de animação do mundo, sequer ganhou as salas de cinema, sendo lançado diretamente nos serviços de streaming, no momento em que o controle da pandemia já permitia o retorno seguro às salas escuras. A própria Disney trata a obra como um filme menor, sem potencial de premiações. Na época de produtores-distribuidores-exibidores que monopolizam toda a cadeia da criação audiovisual para maximizar os lucros (é a Disney quem faz, comercializa e exibe os próprios projetos), Red se torna sintoma da necessidade de fazer cinema no atacado.

Red: Crescer É uma Fera (2022)
6
Nota 6/10

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