A vida de Kelly-Anne está centrada no ato de ver e ser vista. A jovem trabalha como modelo durante o dia, participando de ensaios ousados e sombrios, nos quais veste máscaras e assume uma persona monstruosa. No universo da fotografia de moda, é considerada uma figura bastante profissional, capaz de gerar ótimas imagens em cada proposta. No entanto, longe dos holofotes, ela se fecha num pequeno apartamento impessoal escuro, de poucos móveis e decoração, onde nunca recebe amigos, namorados, familiares.
Isso porque todos os seus afetos estão voltados a um território oculto: a dark web, ou deep web. Ela participa de jogos online, baseando-se em estatísticas para ganhar dinheiro, e navega por salas onde todas as drogas e perversões são disponibilizadas mediante um (alto) preço acordado. Precisa e calculista, ela cresce neste meio graças à descoberta de seus talentos ilícitos. O prazer da modelo-hacker se encontra na busca pelo autoaperfeiçoamento, vencendo partidas mais disputadas, infiltrando-se em grupos ainda mais secretos. O desejo de perfeição e onipotência (virtual, ao menos) a consome.
Neste sentido, compreende-se que Kelly-Anne fique fascinada com o julgamento de Ludovic Chevalier, homem acusado de sequestrar adolescentes, levá-las aos “quartos vermelhos” mencionados no título, para então estuprá-las, torturá-las e matá-las ao vivo, saciando os impulsos dos riquíssimos e perversos espectadores. Neste drama em que o tribunal ocupa metade da narrativa, o réu está presente o tempo inteiro, em silêncio, sob uma redoma de vidro. Ele se encontra exposto tal qual o produto numa vitrine — um manequim. Neste espaço, o modelo é ele. Já a garota passa a observá-lo todos os dias do julgamento, esperando conhecê-lo melhor e conquistar sua atenção. Ao contrário de outras pessoas, enojadas ou apaixonadas pelo suposto serial killer, a protagonista nutre por ele uma estranha admiração profissional.
Red Rooms discute o controle das imagens e o desejo de se apropriar do real a partir de sua representação. […] O longa-metragem estende à estética o princípio do controle. As cenas de tribunal são fantasmagóricas.
Afinal, ambos seriam profissionais do corpo, da performance. Os dois trabalham com o macabro, o deleite de controlar a libido do outro via olhar. Em certa medida, Kelly-Anne se identifica com o homem bárbaro, que provoca nela um misto de desejo e medo. O diretor e roteirista Pascal Plante acentua as conexões possíveis: nos vídeos de massacres das jovens, encontrados pela polícia, o algoz mascarado encara a câmera, exibe-se de perto, comandando o show tal qual um apresentador vaidoso. Com o rosto parcialmente coberto (deixando, porém, os olhos visíveis), ele procura o reconhecimento na proeza de seu crime.
Além disso, um único vídeo — referente ao assassinato mais cruel, praticado com a adolescente mais jovem — está ausente. Kelly-Anne, aquela que tudo vê, parte em busca de sua relíquia, desejando ser a primeira a colocar as mãos nas imagens que nem mesmo a polícia conseguiu encontrar. De certo modo, Red Rooms discute o controle das imagens e o desejo de se apropriar do real a partir de sua representação. Ludovic e Kelly-Anne se tornam diretores de suas ficções, assim como Pascal Plante. Eles comandam sua mise en scène, determinam os ângulos, a luz, as interações. Acumulam as funções de cineasta e ator principal dos mundos criados, sendo, em simultâneo, criadores e criaturas.
Por isso, diante da invisibilidade social, ambos serão levados a ajustar a mise en scène de si próprios, para garantirem que as atenções permaneçam voltadas a si — ela, numa sequência perturbadora envolvendo uma peruca e aparelhos dentários, e ele, numa única manifestação rumo à plateia. Ambos não somente apreciam a atenção voltada a si próprios, mas precisam dela. Em tempos de redes sociais, de celulares e tecnologia avançada, a autoexposição como forma de existir socialmente ganha uma metáfora particularmente perversa na narrativa. Não por acaso, Kelly-Anne possui uma assistente virtual em sua casa, passa o dia na frente de telas, e tem ao alcance das mãos um telefone celular fundamental à trama. Em sua sanha de justiceira-voyeur, ela não percebe que sua aparente liberdade de movimentos pelos chats noturnos esconde uma forma de prisão à compulsão escópica. Na mídia, o caso de Ludovic é tratado na base da exploração mórbida, da chacota, do sensacionalismo. Todos se alimentam da dor alheia.
O longa-metragem estende à estética o princípio do controle. As cenas de tribunal são fantasmagóricas graças ao trabalho de câmera e direção de arte. Numa sala profundamente branca, simétrica e asséptica (com aparência de cenário artificial, não muito distante da sala de execuções do carrasco), a câmera desliza lentamente entre cada rosto, corpo e voz. Passeia pela fala da procuradora e pelo advogado de defesa; filma a mãe das vítimas e os demais jurados (dentre os quais existe um homem idêntico a Ludovic); atravessa o olhar despojado do réu e a atenção maníaca de Kelly-Anne. Há uma vontade de abraçar todas as personalidades presentes, porém com calma, tal qual um investigador que perscruta, investiga, prestando atenção aos detalhes.
É curioso que, nestes instantes, o ponto de vista não pertença à modelo, responsável por conduzir o restante da trama. Durante o julgamento, o filme privilegia um olhar externo e distanciado, incapaz de se identificar com nenhum personagem em particular. Este seria o olhar do público, a quem se propõe julgar cada peça ou argumento apresentado pelas partes adversas. Esta predisposição se torna fundamental para que a obra se dissocie da percepção (moralmente questionável) da jovem, evitando defendê-la em suas ações extremas. Plante não deseja que o público torça por ela, nem tema a repercussão crescente de suas aparições no tribunal, dia após dia.
Somos levados a questioná-la, com um misto de curiosidade e incompreensão. Kelly-Anne será, até a última cena, uma personagem voluntariamente opaca, tanto pelas guinadas de roteiro e direção (vide o relacionamento dela com Clémentine, novamente na chave do controle agressivo graças ao olhar), tanto pela atuação de Juliette Gariépy no papel principal. A jovem atriz, com pouca experiência no cinema, oferece uma composição assombrosa, no sentido de conter os gestos e a expressividade (a personagem fala pouquíssimo ao longo da narrativa), enquanto transmite um turbilhão de emoções por trás do corpo controlado, ereto, e dos olhos vidrados.
A indefinição quanto aos objetivos da heroína pode ser o ponto de maior fascinação neste projeto, ou então o aspecto que provocará certo desinteresse do público. Afinal, o diretor não facilita a tarefa ao espectador. Nunca sabemos ao certo de onde vem a obsessão de Kelly-Anne por esse caso em particular, nem qual uso ela pretende fazer do vídeo perdido, caso o encontre. Informações fundamentais acerca de suas motivações surgem somente na segunda metade da trama, e tampouco justificam todos os seus movimentos. Por isso, na sequência final, uma grande atitude heroica ainda desperta questionamentos, posto que tal gesto de nobreza soa imcompatível com a personagem amoral.
Em particular, Red Rooms rompe com a lógica da investigação-espetáculo, baseada na gradação e no envolvimento emocional do espectador. Demoramos muito a saber se Ludovic possui culpa nos fatos ou não, e a resposta surge de maneira anticlimática, através da fala de terceiros. A modelo se descola do arquétipo da heroína bondosa, que pretende apenas ajudar a justiça, nutrindo um fetiche (erótico, inclusive) por sua ascensão neste mundo de homens dominadores. Os fatos não são apresentados ao espectador, nem os vídeos de morte, apenas sugeridos.
Ao invés de caminharmos a uma verdade esclarecedora, deparamo-nos com zonas cinzentas, conforme o próprio filme perde interesse no tribunal rumo à conclusão. Aqui, o veredito se torna secundário, assim como os efeitos do episódio na vida de Kelly-Anne. É sintomático que, ao final, a câmera permaneça dentro de casa, observando a mulher se distanciar na noite escura, deixando-a partir. Plante dispensa tanto a conexão emocional com a jovem quanto o julgamento apressado de um possível assassino. Em contrapartida, privilegia nossa relação perversa, e até doentia, com as imagens do outro, com a apropriação simbólica dos corpos, fetichizados e mercantilizados em tempos contemporâneos. Existe um distanciamento crítico em relação a ambos os personagens.
Parte do horror desta obra sinistra reside neste convite a manifestar certa repulsa por eles em igual medida. Não os conhecemos, nem os conheceremos. Os verdadeiros protagonistas de Red Rooms serão LadyOfShalott, personagem virtual criada por ela para jogos de pôquer e negociações virtuais, além do homem mascarado dos vídeos, e das garotas representadas em fotos. De certo modo, os verdadeiros motores da trama estão ausentes, o que desperta esta impressão etérea, perturbadora, de acompanhar a busca por uma verdade que nunca chegará por completo. Aqui, o caminho importa muito mais do que o desfecho, rompendo por completo com os chavões dos filmes de tribunal.