Resumo da Ópera (2025)

Vertigem da performance

título original (ano)
Resumo da Ópera (2025)
país
Brasil
linguagem
Experimental
duração
92 minutos
direção
Honório Félix, Breno de Lacerda
elenco
Ana Luiza Rios, Ayrton Pessoa, Bob, Clau Aniz, Felipe Damasceno, Levy Mota, Loreta Dialla, Marta Aurélia, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni, Vitor Cozilos, Vitor William, Pereira Monte
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Não é muito fácil adentrar o universo de Resumo da Ópera, que funciona segundo regras bastante particulares, e já mergulha o espectador em pleno turbilhão. Ele dispensa uma introdução propriamente dita, ou o acompanhamento deste mundo queerkitsch-futurista por meio de algum olhar externo. Descobrimos seres coloridos, banhados em luz neon, conversando diretamente com a câmera que gira diversas vezes em 360º, como se o palco ocorresse ao nosso redor. O olhar do público, desta vez, se encontra literalmente no centro da ação. 

Os personagens se expressam num palavreado rápido, de afronta, incluindo reflexões acerca do estado das coisas, de uma criatura chamada Ning (abreviação de Ninguém), enquanto juram pelo “todo poderoso falo”. O título em inglês, detalhado na legenda, prefere o termo “Land Grabbing” (?). Antes mesmo de compreendermos como estas peças misteriosas podem integrar um conjunto coeso, as figuras indistintas, desprovidas de nome, continuam falando. A verborragia ininterrupta torna esta parte inicial a mais árida e hermética do longa-metragem, que aparenta nos gritar algo, sem nos permitir ao certo entender o que nos solicitam (ou de quê nos acusam).

Logo, adentramos o mundo proposto pelos diretores Honório Félix e Breno de Lacerda por meio da retórica. Depois de certa insistência infrutífera em decifrar todos os códigos deste enigma frenético, torna-se mais fácil apreciar o palavreado pelo simples fato de existirem corpos queer, não-binários e trans (condensados no imaginário do extraterrestre), ocupando a fala, dominando o belíssimo Teatro José de Alencar, expressando-se livremente. O extenso e imponente texto, espécie de fluxo de um pensamento maníaco, se torna secundário em relação ao próprio fato de estas pessoas falaram como bem desejam. A voz adquire uma função em si mesma, dissociada de seu conteúdo.

Os melhores instantes de Resumo da Ópera ocorrem quando o filme se permite contemplar, ao invés de discursar. A experiência também interessa muito enquanto cinema queer.

Os diálogos não são o único elemento em movimento perpétuo. A câmera desliza incessantemente de um setor do teatro ao seguinte, passando pelas escadas, o palco, a coxia, o pátio central. A direção de fotografia de Breno de Lacerda simula um único plano-sequência durante a maior parte da narrativa, que consiste em longas sequências reunidas por cortes invisíveis. Portanto, o dispositivo é quem mais se desloca ao longo desta espiral vertiginosa. Muitas vezes, os personagens se encontram em posições estáticas, porém, a câmera os circunda, aproxima-se do rosto, volta-se ao teto, até decidir acompanhar uma próxima figura que surge no canto do enquadramento.

A experiência durante a Mostra de Tiradentes despertou dúvidas nos espectadores. Durante os giros da câmera na cena inicial, a imagem “flicava”, ou seja, apresentava solavancos no trajeto que se pretendia contínuo. Seria um gesto da direção, ou problema na projeção? O mesmo valia para o som fora de sincronia. Alguns juravam que a cópia exibida no evento mineiro apresentava problemas, mas visto que os graus de dessincronia labial variavam bastante, talvez seja mais coerente apostar numa decisão voluntária de trabalhar com o som inteiramente dublado a posteriori.

Resumo da Ópera parece não possuir nenhum som direto (mais uma hipótese a confirmar). O imperativo do plano-sequência, do deslocamento quase ininterrupto por diversos espaços, dificulta bastante a tarefa do som e da fotografia. É possível que, na impossibilidade de colocar um boom nos enquadramentos bastante abertos, ou de disfarçar lapelas em muitas dezenas de atores presentes, teria sido escolhido o trabalho de dublagem, com os atores refazendo suas próprias falas. Isso justificaria alguns momentos de total dessincronia (a cena inicial; o personagem português) e outros mais próximos de uma sincronia perfeita com os lábios (o terço central, em particular).

Os desafios do plano-sequência também explicam porque, na impossibilidade de esconder refletores ao longo do percurso da câmera, a solução encontrada consistiu em deixar todas as luzes acesas, o tempo inteiro, posicionando algumas lâmpadas verticais sobre tripés pelo caminho dos atores. É difícil determinar, neste caso, se o plano-sequência ajuda o projeto (pela fluidez e pela expansividade do espaço), ou se o prejudica, graças às restrições autoimpostas. A impressão de enxurrada de mensagens-movimentos poderia ser reproduzida numa construção mais decupada e fragmentada? Quem sabe?

De qualquer modo, os melhores instantes de Resumo da Ópera ocorrem quando o filme se permite contemplar, ao invés de apenas discursar. A câmera, ainda flutuante, se interrompe por alguns segundos para presenciar interações mais longas, performáticas, sem lições a dar, nem informações a veicular. É muito bom reconhecer a presença de grandes atrizes como Ana Luiza Rios e Marta Aurélia em meio a inúmeros mascarados. A primeira, dotada de grande expressividade e versatilidade, comanda uma belíssima performance sob a chuva de pó branco em contraluz. Cenas de respiro como estas, em meio à avalanche, tornam-se fundamentais para o espectador retomar o fôlego.

Algo semelhante ocorre com a apresentação de um dançarino num pequeno palco, enquanto uma nadadora efetua suas coreografias em frente. Quando o projeto nos permite apenas admirar, e formular nossos próprios questionamentos (ao invés de fornecer novos ditames apocalípticos a respeito de Ning e a multiplicação das distopias), percebe-se com mais clareza a beleza dos corpos em movimento, a riqueza do espaço, a variação das luzes e posicionamento das cores (o belo uso do neon, a variação de lâmpadas verdes e lilases sobre o palco central, durante o trecho do personagem português).

No entanto, esta trégua dura pouco: a avalanche retoma, incluindo letreiros acima e abaixo da tela, em sentidos opostos, escritos em linguagem apenas análoga ao português. Talvez seja preciso compreender o gesto de Félix e Lacerda como um assalto voluntário aos sentidos, diante do qual precisamos apenas nos abrir aos estímulos, desprezando muitos questionamentos racionais. Contra tantos filmes experimentais que preferem o distanciamento (por exemplo, O Mundo dos Mortos, para citar outro exemplo de Tiradentes), a obra cearense prefere uma imersão profunda e ininterrupta. Que se prenda a respiração e mergulhe junto.

A experiência também interessa muito enquanto cinema queer — compreendido não apenas enquanto representação de corpos e subjetividades não-normativas em frente das câmeras e atrás delas, mas do uso de uma estética não-normativa. O projeto rompe com praticamente todos os pressupostos do cinema clássico, e mesmo do cinema experimental elegante, polido, intelectual, que costuma ocupar galerias e museus. Ele trabalha com seu ritmo singular, em intensidade febril, com cores fortes, abraçando o artifício, a loucura, a expansão dos significados enquanto meio e finalidade. 

Logo, o gênero ou sexo dos personagens importa pouco. Sob as máscaras e maquiagem fortíssima, banhados nas mesmas luzes antinaturalistas, eles se tornam cosmonautas, operários, habitantes de um planeta distante. As metáforas representadas pela fantasia e a ficção científica, além da fuga ao real, em chave mais ampla, sempre foram muito frutíferas para representar subjetividades livres, fora da norma. O monstro e o extraterrestre simbolizam o outro, o diferente, aquele que vem de fora (das regras sociais) e pode, portanto, ser o que quiser. Resumo da Ópera festeja, numa orgia voluntária dos sentidos, as interações ininterruptas entre os corpos e os seres.

Resumo da Ópera (2025)
7
Nota 7/10

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