Retrato de um Certo Oriente (2024)

Latência em preto e branco

título original (ano)
Retrato de um Certo Oriente (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
92 minutos
direção
Marcelo Gomes
elenco
Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel, Zakaria Al Kaakour, Eros Galbiati, Rosa Peixoto
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

Emilie (Wafa’a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) estão desesperados. Ele invade o convento onde se encontra a jovem, saca um revólver, ameaça cometer suicídio caso ela não parta do local com ele. Segundos depois, grita pelo deserto, com os braços erguidos, evocando a vontade de morrer. Retrato de um Certo Oriente começa em tom elevadíssimo de catarse, sem que o espectador saiba quem são estes dois personagens, nem o motivo de tamanha angústia.

Aos poucos, as dúvidas se esclarecem — parte delas, pelo menos. Trata-se de irmãos, não de amantes, como poderiam soar a princípio. A casa vendida por ele num gesto irrefletido consistia na propriedade herdada por ambos. Ele decide, de maneira unilateral, comprar passagens para imigrarem ao Brasil, onde escutou haver empregos. Deitam-se num deserto árido, imenso, filmado de modo a torná-los ainda menores em meio à natureza. O diretor Marcelo Gomes registra este prólogo como quem lança Ulisses para sua Odisseia.

Algumas questões persistem. De que estes dois abriram mão para se mudarem a outro continente? Que tipos de violências experimentaram, a ponto de decidirem partir? Que trabalhos efetuavam no Líbano, que relação possuíam com a terra, a religião, os familiares? Tiveram romances anteriores, ou interesses em pessoas específicas? Que imagens Emir tinha sobre o Brasil, quando a sugestão lhe foi soprada aos ouvidos pela primeira vez? O longa-metragem acompanha corpos em movimento, dotados de muita exterioridade. Parte considerável de sua subjetividade, no entanto, permanece oculta.

Gomes oferece um filme estrangeiro a todos: sejam os brasileiros, os libaneses, os fãs do livro de Milton Hatoum, os cinéfilos acostumados aos seus projetos anteriores.

Estes fatores contribuem à experiência hermética da obra — deslumbrante visualmente, sem dúvida, porém hermética. Isso porque a fotografia em preto e branco de Pierre de Kerchove é tão suntuosa, e chama tanta atenção para si mesma, que corre o risco de fagocitar o humanismo que visa representar. Talvez nem possa ser chamada de preto e branco, mas de preto e cinza, visto que o branco total nunca se encontra presente. 

A direção de fotografia diminui os personagens até se tornarem detalhes na imensa Amazônia, ou se aproxima da geografia até capturar os detalhes dos vermes de terra. Os elementos soam fora de proporção: são grandes ou pequenos demais, próximos ou afastados demais, além de carregarem distorções óticas concebidas para a perturbação dos sentidos. Nos planos fixos, a conversa entre irmão e irmã, em duas profundidades diferentes, descarta o plano e contraplano em prol do foque e desfoque. Às vezes, os personagens se posicionam nos terços exatos da imagem, iluminados por um feixe de sol cuidadosamente registrado na porção do quadro que lhe interessa.

Trata-se de um cinema do controle, da rigidez. Marcelo Gomes sempre se abriu a maior espontaneidade e leveza, porém, desta vez, se arrisca num grau de estetismo incomum em sua filmografia. A experiência do longa-metragem soa como passear pela exposição de algum fotógrafo preciosista, para quem o mundo precisa se adequar às vontades da câmera, não o contrário. Durante a sessão no Olhar de Cinema, mais de uma pessoa comparou este gesto às fotografias em still de Sebastião Salgado. Há beleza, sem dúvida, mas tal beleza ajuda as subjetividades, ou se sobrepõe a elas?

Tamanha pose na disposição de elementos no espaço-tempo afeta ao elenco — em especial, os atores libaneses. O trio formado por Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamelme Zakaria Kaakour demonstra o comprometimento de quem assume uma tarefa importantíssima, grave, consequente. Por isso, ostentam semblantes sofridos, muito compenetrados, lábios rígidos, vozes torturadas. O filme corre o risco de se levar a sério demais, sem perceber que mesmo as incertezas da vida possuem seus absurdos, suas incongruências, sua beleza descontraída. Neste sentido, os pequenos instantes de humor (o orgasmo ressuscitador”, como descreveu uma espectadora; o som da manga chupada durante o sexo) são muitíssimo bem-vindos.

A chegada de Rosa Peixoto também confere à obra uma necessária espontaneidade. A excelente atriz entrega suas falas como quem conversa com amigos próximos num boteco. Sua facilidade com os textos e o despojamento do corpo sinalizam que o filme sisudo e autoimportante começa, enfim, a se descontrair, a demonstrar malícia, uma espécie de descanso. Retrato de um Certo Oriente jamais se renderá à loucura, ao furor, preferindo manter uma rígida elegância no horizonte estético. Mesmo assim, permite que os personagens e o espectador enfim respirem — como se saíssem da exposição fotográfica para fumar um cigarro no terraço.

A presença de comunidades indígenas também favorece a impressão do naturalismo crescente — talvez, pelo fato de nossos olhos brasileiros estarem mais acostumados ao som desta língua, e a estes corpos e rostos, do que à cultura libanesa. A narrativa permite algumas bifurcações, um tempo menos cronometrado, mais impreciso, dilatado, vasto. Saímos do mundo das informações, dominante no início, para adentrar as sensações. Este, sim, é o terreno no qual o cinema de Marcelo Gomes demonstra maior conforto e maleabilidade.

A sexualidade de Emir se torna o símbolo exato desta adequação. Visto de fora, o jovem pode parecer apenas um poço de ressentimento, incapaz de se transformar, e vitimado pelo próprio conservadorismo. No entanto, o filme deixa transparecer uma paixão incestuosa pela irmã, além do convite à experiência homoerótica com um fotógrafo. Embora escape a ambas tentações, o imigrante se complexifica pela construção daquilo que poderia ser, caso se permitisse. Emilie adapta-se ao solo estrangeiro porque abraça seus desejos; Emir sucumbe devido à impossibilidade de deixar no Líbano seu Líbano-interior. 

No final, o projeto se sobressai pela tomada de riscos. Trata-se de um cinema brasileiro que prioriza o olhar estrangeiro, filmando a Amazônia longe do realismo social. Ele privilegia a sexualidade presa à latência; combinando uma fotografia barroca com o trabalho de som ultrarrealista. Nem tudo funcionará às mil maravilhas — há excessos, faltas, arestas a aparar. No entanto, prefere-se as obras arriscadas, em seu desejo de abraçar novos temas e mundos, ao world cinema concebido para satisfazer o imaginário apaziguado do estrangeirismo. 

Gomes oferece um filme estrangeiro a todos: sejam os brasileiros, os libaneses, os fãs do livro de Milton Hatoum, os cinéfilos acostumados aos seus projetos anteriores. Conserva questões essenciais em sua filmografia, a exemplo dos personagens em eterno deslocamento, e da sensação de não-pertencimento. Mas insere tal humanismo numa embalagem que não pareceria, a princípio, aquela mais adequada para valorizá-lo. Este é um filme que busca existir na contradição — não apesar dela, mas para ela, graças a ela. 

Retrato de um Certo Oriente (2024)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.