Lola e o Mar (2019)

Transexuais têm direito ao melodrama

título original (ano)
Lola Vers la Mer (2019)
país
Bélgica, França
gênero
Drama
duração
90 minutos
direção
Laurent Michelo
Elenco
Mya Bollaers, Benoît Magimel, Els Deceukelier, Sami Outalbali, Jérémy Zagba, Anemone Valcke, Adriana da Fonseca
visto em
Cinemas

Você já viu esse filme antes: uma jovem deixa o lar devido ao péssimo relacionamento com o pai opressor. Ela vive de pequenos bicos, até uma tragédia familiar (geralmente, a morte de uma mãe ou avó) forçar ambos a se reunirem. Assim, duas pessoas que se detestam precisam efetuar uma viagem juntas, ao longo da qual aprenderão a se suportar e redescobrirão um afeto reprimido após anos de brigas e insultos. Este cinema otimista acredita na reconciliação inevitável que ocorrerá mais cedo ou mais tarde.

O grande diferencial, se pudermos chamá-lo assim, diz respeito ao fato de Lola (Mya Bollaers), a adolescente em questão, ser uma garota transexual. Sua identidade constitui um fator importantíssimo e desimportante, ao mesmo tempo. Por um lado, o gênero da filha serve de motor de hostilidade ao pai conservador e ignorante, e representa o principal nó a desatar no interior desta família. Ela tem direito a um momento de “coming out transexual”, algo raro e desconfortável a todos os envolvidos (incluindo o espectador). “Eu sou trans, papai!”, grita a menina.

Por outro lado, a singularidade não contamina a narrativa esteticamente: o diretor Laurent Micheli bebe diretamente na fonte dos road movies norte-americano, especialmente do subgênero indie que monopoliza festivais como Sundance e Toronto. A luz natural, as cenas de Lola colocando a cabeça para fora do carro para tomar vento, e a câmera na mão, seguindo-a pelas ruas, poderiam vir de qualquer drama norte-americano de baixo orçamento. Deste modo, a identidade de gênero da heroína se torna secundária. Ela poderia ter fugido de casa por outro motivo, sem que isso provocasse alterações significativas no projeto. Temos um filme LGBT desprovido de estética queer

A apreciação do drama dependerá da relação do interlocutor com esta escolha. É possível enxergar uma virtude nas opções humildes de som e luz, além da indiferenciação do gênero de Lola — o cineasta estaria tratando a garota como qualquer outro personagem cis, discursando através de uma narrativa acessível ao espectador médio. Em contrapartida, pode-se interpretar a decisão como uma diminuição de suas particularidades — ser trans, neste caso, equivaleria a um sentimento vago e amplo de inadequação social, não muito diferente de ser negro, ser pobre, ser “diferente”. 

Jamais conhecemos os sonhos profissionais da adolescente, seus interesses amorosos, seus gostos ou preferências políticas: ela será reduzida à identidade trans, e todos os conflitos giram em torno deste fator: ela precisa encontrar seus hormônios durante a viagem, além de agendar a cirurgia de redesignação de gênero e sofrer com o preconceito transfóbico de praticamente todos os personagens coadjuvantes — com exceção de uma cafetina gentil, elevada à função simbólica de mãe postiça. 

Jamais conhecemos os sonhos profissionais da adolescente, seus interesses amorosos, seus gostos ou preferências políticas: ela será reduzida à identidade trans.

Ainda mais questionável é o paralelismo estipulado entre a filha e o pai. Conforme Philippe (Benoît Magimel) adentra a trama, ele se torna tão importante quanto Lola, e o roteiro passa a dedicar várias sequências à dor solitária do patriarca, inconformado com a identidade de gênero da filha. O discurso sugere que esta fase seria igualmente difícil para os dois, como se a dor do tipo brutamontes merecesse o mesmo respeito daquela sofrida pela protagonista trans. A mensagem do tipo “é tão difícil para mim quanto para você” constitui um ranço conservador no longa-metragem que estima ser importante respeitar, em igual medida, o opressor e o oprimido.

A importância crescente do pai também se justifica pela presença de um ator experiente e talentoso neste papel. Magimel domina suas cenas, atenuando a rispidez do pai enquanto minimiza o caráter redentor das pequenas concessões de afeto à filha. Nas mãos de outro ator, talvez a jornada soasse ainda mais maniqueísta, e propensa a eleger Philippe enquanto verdadeiro personagem principal. Existe um problema fundamental na noção de que o público amplo somente possa se identificar com a trajetória de uma menina transexual caso haja um homem cis, hétero e branco ao lado dela. 

Lola e o Mar também desperta atenção pela mão pesada de Micheli para o melodrama. Em cenas de evidente caráter emocional, o cineasta faz questão de inserir trilhas sonoras tristonhas ao piano ou violino, além de chuvas torrenciais, fotografias saudosas da infância e flashbacks explicativos da menina sofrendo bullying. O coquetel soa particularmente indigesto na cena final, quando se sobrepõem, ao longo de poucos minutos, a música triste, uma carta emotiva lida em off, o álbum de retratos da família, um flare divino no rosto do personagem, uma rajada de vento, bolhas de sabão e um sorriso infantil. A sobrecarga simbólica beira o humor involuntário.

Pelo menos, percebe-se o respeito do elenco e dos artistas pela temática que desejam abordar. O cinema começa a compreender, enfim, a necessidade de escolher uma atriz transexual para o papel de uma personagem trans, e passa a se dissociar gradativamente da obsessão pela genitalidade das pessoas trans. Este é um projeto singelo, marcado pela boa vontade ao invés da boa execução. Por trás da profunda previsibilidade da narrativa existe a vontade louvável e ingênua de acreditar numa reparação social pelo afeto.

Já o mar do título se torna um sintoma do caráter pouco memorável da obra. O longa-metragem teve dois títulos originais: primeiro, apenas Lola, e depois, Lola Vers la Mer (“Lola em direção ao mar”). No Brasil, o mar se tornou co-protagonista, apesar de desempenhar função nula na trama. A garota chega à praia, porém nunca aproveita o mar. O filme tampouco explora este espaço. Há uma dificuldade em trabalhar os signos, os respiros e a contemplação. Samir (Sami Ouatalbali) e Antoine (Jérémy Zagba) serão esquecidos pelo caminho, enquanto a jovem será recolocada num trem por decisão paterna. O diretor pretende colocar seus personagens em movimento, como se o fluxo constituísse um valor em si. Importará pouco o lugar onde chegarão, ou ainda se chegarão a algum lugar.

Lola e o Mar (2019)
5
5/10

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