Salomé é princesa e assassina. Uma figura presente na Bíblia (não-nomeada enquanto tal), conhecida por decapitar João Batista. Foi seguidora de Jesus, embora represente “um símbolo da luxúria imortal”, conforme descreve um personagem. Compreende-se que uma figura tão complexa moralmente, e nas suas relações de gênero (agindo de maneira diferente do que se esperaria da mulher numa sociedade patriarcal) seja alçada ao posto de protagonista num filme queer.
Aqui, ela é reimaginada enquanto mito, mas também uma encarnação análoga àquela de uma jovem modelo, nascida e criada no Recife, que volta à casa da mãe durante as festas de fim de ano. Quando Cecília (Aura do Nascimento) conhece João (Fellipy Sizernando) e prova a estranha poção esverdeada que ele carrega, mergulha igualmente numa seita tendo como objetivo evocar a figura lendária. Salomé sai então do cristianismo ao paganismo; do século I ao século XXI; de uma relação de vingança pessoal, em função de um homem, para uma mulher autônoma.
Para o diretor André Antônio, os principais conflitos do longa-metragem estão relacionados às relações de afeto entre mulheres, seja de Cecília com a mãe (Renata Carvalho), uma mulher religiosa, e também bastante carinhosa com a filha; seja com a tia (Danny Barbosa). Amigas também entram na equação, aconselhando a heroína e sugerindo novos trabalhos. Já a paixão pelo ex-vizinho de bairro se mostra repentina, instável. O rapaz aparece e desaparece com a mesma facilidade, agindo como se fossem muito próximos num instante, apenas para sugerir em seguida que a afinidade era apenas “uma sarrada”.
Talvez esta seja a principal comoção diante do filme: não encontrar conflitos onde se esperaria vê-los, nem presenciar furor ou dramaticidade a partir de elementos perfeitos ao drama clássico.
Convém pensar nesta obra enquanto romance de uma garota que se apaixona por um garoto. Deve ser interessante, para a mentalidade do espectador médio, presenciar uma narrativa repleta de pessoas queer, com corpos não-hegemônicos, ocupando organicamente uma história de amor. Ela sofre com a distância, manda mensagens com saudades. Recebe o colo da mãe, as opiniões das colegas. Cecília poderia ser a personagem central de um projeto cis-hétero hollywoodiano.
Ela possui um diferencial, no entanto. Aura do Nascimento é uma atriz transexual. Renata Carvalho e Danny Barbosa, também. Fellipy Sizernando é um jovem ator gay da Paraíba, já tantas outras figuras da narrativa fluem no espectro que vai do lesbianismo à transgeneridade, passando por diversas matizes de não-binariedade. Nenhum deles interpreta figuras cis ou trans, gay ou hétero — estas categorias se tornam dispensáveis aqui. O gênero e a sexualidade dos participantes nunca constituem o motor de reviravoltas e tensões. Na cama, durante a única e delicada cena de sexo, é a namorada quem penetra o namorado. E por que não?
Salomé impressiona por sua configuração ao mesmo tempo provocadora e natural. O diretor nunca deseja chocar, nem provocar indignação. Pelo contrário: ele se encontra num momento artisticamente posterior a tantos filmes concebidas para despertar reações epidérmicas numa plateia cis-hétero. Sua abordagem poderia ser resumida na cena inicial, envolvendo o desfile de personagens queer para uma plateia igualmente queer. Antônio permite que o público de corpos e sexualidades não-normativas se enxergue na tela, representado em expressões de desejo multifacetadas. Este é um filme terno, doce, amigável. Paramos de pressupor, enfim, que todo espectador seja cis-hétero até prova em contrário.
Assim, em oposição aos tradicionais planos próximos, velozes e de grande impacto, encontramos imagens curiosamente melancólicas. As cenas duram muito além do mínimo necessário à compreensão das ações. Os criadores desejam que o público passe tempo com estes jovens, mergulhando no palavreado cheio de gírias jovens, LGBTQIA+ e recifenses, empregadas com impecável senso de crônica de uma época e geração. São figuras movidas por objetivos amorosos e profissionais, ainda que nenhum destes constitua um foco obsessivo em suas vidas.
Para uma narrativa que discursa de maneira tão acolhedora a respeito de inúmeras drogas (LSD, MD, Loló, cogumelo, mescalina, pó) e concebe o prazer a partir de seitas, envolvendo michês e criaturas fantásticas, surpreende a maneira como Antônio aproxima sua aventura da comédia teen. Talvez esta seja a principal comoção diante do filme: não encontrar conflitos onde se esperaria vê-los, nem presenciar furor ou dramaticidade a partir de elementos perfeitos ao drama clássico e convencional. O cineasta abraça fetiches e outros temas tabus enquanto partes do dia a dia. Filma o sexo como quem filma um passeio no parque, ambos imbuídos de idêntica carga afetiva.
Os atores embarcam na proposta de naturalização dos encontros. Aura do Nascimento evita adequar seu corpo às poses e padrões esperados ao imaginário popular da modelo. Basta ver as fotos profissionais coladas na parede do quarto, pela mãe, para acreditarmos em seu potencial. João tampouco reflete a ideia de sedução dos michês habituais, ou a periculosidade associada aos traficantes. Eles atuam com a tranquilidade de quem dispensa a vaidade, a composição esforçada demais. Transmitem um despojamento dificílimo de alcançar, sobretudo numa obra não-naturalista.
O mesmo vale para a direção de arte, a fotografia, a trilha sonora. Os personagens vestem roupas levemente deslocadas da média, em cenários um pequeno grau acima do naturalismo. Mesmo a seita passaria por um estúdio fotográfico descolado. A fotografia aposta em composições clássicas, observando todos os personagens de igual para igual, à altura dos olhos, sem estabelecer hierarquias. Já a trilha sonora aposta em composições sentimentais, grandiloquentes, para registrar a aventura entre uma garota e um garoto pela cidade. O mundo está levemente deslocado do realismo, mas não a ponto de chamar atenção para seu artifício enquanto finalidade.
Alguns espectadores poderão apontar o dedo à rara cena de sexo, ao curto momento de fetiche, à presença de personagens queer, à descrição da seita, enquanto elementos de distinção da média das produções. No entanto, os fragmentos que colam à memória, após uma sessão de Salomé, são as provocações amistosas entre Cecília e João enquanto caminham na rua, e as trocas afetuosas da mãe com a filha. (Renata Carvalho está excelente neste papel, baixando o volume da voz, transmitindo adoração à garota em cada olhar). Às vezes, onde se espera catarse e violência, a postura política mais assertiva consiste em encontrar a beleza do cotidiano.