Contratempos (2021)

A implosão da classe trabalhadora

título original (ano)
À Plein Temps (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
88 minutos
direção
Éric Gravel
elenco
Laure Calamy, Anne Suarez, Cyril Gueï, Geneviève Mnich, Lucie Gallo, Mathilde Weil
visto em
Festival Varilux de Cinema Francês 2022

É muito fácil se identificar com a protagonista Julie Roy (Laure Calamy). Os conflitos desta mulher dizem respeito àqueles de muitas pessoas de classe-média, especialmente aquelas empobrecidas pelos últimos anos de crise política, econômica e sanitária. Ela precisa cuidar das crianças, pagar as contas, chegar ao trabalho em plena greve dos transportes, brigar com o ex-marido pelo pagamento da pensão. Quando chega em casa, ainda cozinha, lava, arruma.

Haveria diversas maneiras de enxergar esta rotina atarefada. A partir do mesmo roteiro, os irmãos Dardenne talvez fizessem um drama social cru, com a câmera na mão acompanhando de perto as andanças. Os irmãos Coen talvez preferissem explicitar o absurdo, transformando o conteúdo numa comédia. Mikhaël Hers apostaria na película granulada e no sentimento de vazio da protagonista entre tarefas, percebendo o pouco tempo despendido a si própria.

Ora, o cineasta Eric Gravel enxerga nesta premissa um drama repleto de tensão e urgência, próximo do thriller social. Ele inclui músicas eletrônicas de batida acelerada quando a heroína finalmente pega o transporte público, e acentua os ruídos da correria de Julie rumo aos trilhos da estação, prestes a perder o último trem do dia. Ela corre contra o relógio, como fariam os protagonistas de filmes envolvendo sequestros e ameaças de vilões. Ora, ela deseja apenas manter o emprego e a família.

O roteiro embute nesta jornada um sem-número de obstáculos enfrentados pela funcionária com um mestrado em economia, atuando no momento como chefe das camareiras de um hotel de luxo. A babá cogita interromper o trabalho com crianças; o ex-marido não atende o telefone; os metrôs e ônibus estão interrompidos; o ritmo de trabalho se acentua. Quanto mais esforço ela efetua, menos os conflitos ao seu redor se acentuam. Pelo contrário, chega uma nova funcionária a formar, uma festa de aniversário a organizar.

O filme insiste que o sistema está corrompido, levando os cidadãos ao limite da dignidade e da saúde mental.

A estrutura abraça uma progressão lenta e certeira. Os dilemas introduzidos desde as primeiras cenas são os mesmos até a conclusão. No entanto, eles se acumulam, tornam-se mais perigosos: cada atraso no hotel implica numa ameaça de demissão, cada demora em buscar as crianças aumenta a chance de desistência da babá. Julie luta, corre, utiliza sua inteligência e sua lábia, para apenas atenuar uma crise crescente. Ela nada contra uma maré que, ao que tudo indica, engolirá esta trabalhadora mais cedo ou mais tarde.

A sucessão de obstáculos poderia facilmente cair no fetiche da miséria, comum a tantos dramas “inspiradores” de Hollywood que mantêm, no fundo, um teor sádico. Felizmente, Gravel evita transformar a dor alheia em diversão para o espectador. Vários mecanismos permitem a fuga da manipulação emocional. Em primeiro lugar, não há catarse: esqueça os choros fáceis, ou instantes de explosão emocional permitindo ao espectador canalizar os próprios sentimentos. Julie tampouco coincide com uma mártir, uma figura de resiliência e estoicismo. Seu movimento condiz com a implosão.

Em segundo lugar, nenhum conflito surge de fora, de maneira artificial, para acentuar as dificuldades. Ou seja, nada de doenças súbitas, ridicularização na entrevista de trabalho, ultimatos para pagar as contas ou abrir mão do imóvel. Todos os dilemas são inerentes aos problemas anunciados, sendo progressivamente resolvidos, ou parcialmente atenuados, conforme a jornada avança. Gravel não deseja provocar choros e comoções, nem de sua personagem principal, nem do espectador.

Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, seja a maneira como os entraves são filmados pelo autor. A câmera e os enquadramentos assumem a função de parceiros distanciados, ou seja, nem colados ao rosto para sublinhar expressões, nem distantes a ponto de espiarem a mulher enquanto voyeurs. Os instantes de maior potencial emotivo recebem um olhar comedido, evitando rostos ou som direto — vide a excelente resolução de um conflito médico relacionado ao filho pequeno, sem som, através de uma porta de vidro. A direção prefere se aproximar do corpo da personagem em situações aparentemente corriqueiras, ainda que repletas de tensão: a espera pelo trem durante a greve, a incerteza sobre a maneira de voltar para casa.

Conforme a narrativa avança, a profundidade de campo se torna reduzida: os fundos desfocados acentuam a asfixia, sem solicitar mudanças na atuação da protagonista. Laure Calamy, mais conhecida pelos papéis cômicos, se prova uma excelente escolha para este drama. Ela evita habilmente a bravura exemplar ou o cansaço extremo: embora esteja visivelmente afetada pela rotina, segue em frente por inércia, de modo quase automático. O espectador não é solicitado a nutrir nem piedade, nem admiração particular por ela, somente enxergar nesta figura um outro de nós mesmos.

Contratempos poderia correr o risco de criminalizar as greves nacionais, interpretando-as como empecilhos suplementares à classe operária. Ora, o discurso insiste em oferecer alternativas de ponto de vista, a exemplo do personagem Vincent (Cyril Gueï), um protestante que se aproxima de Julie. Em paralelo, a própria mulher declara que manifestaria nas ruas, se pudesse. Enquanto isso, a solidariedade dos franceses, informando uns aos outros quanto aos transportes disponíveis, e oferecendo caronas entre a periferia e o centro, desperta a impressão de uma rede de auxílio. 

Embora não mergulhe nas origens nem nas consequências dos movimentos sociais, o drama demonstra uma admiração distante por este esforço coletivo em prol de melhorias urgentes. Enquanto isso, somos levados a compreender os pontos de vista de cada personagem em cena: seja a camareira exausta, suas colegas irritadas com o atraso dela, a chefe prestes a demiti-la, a babá, etc. Não há vilões nem vítimas neste contexto onde uma pessoa prejudica as demais sem qualquer prazer ou intuito perverso. Ao tentarem acertar suas próprias situações, colocam outros em risco — vide as cenas em que a heroína incita a demissão das amigas para manter o emprego.

Existe um caráter perverso nesta história, porém ele não provém do caráter de Julie, de Vincent, de Lydia, de Jeanne ou qualquer outra personagem em cena. O filme insiste que o sistema está corrompido, levando os cidadãos ao limite da dignidade e da saúde mental, e provocando reações em cadeia, explicadas pela necessidade de sobrevivência. O diretor propõe um belo estudo socioeconômico da França atual, fortalecendo a crença nos indivíduos em paralelo com a descrença no atual funcionamento do poder.

Contratempos (2021)
9
Nota 9/10

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