A adaptação do curta-metragem Sem Coração (2014) ao formato longa-metragem despertava grande curiosidade. Afinal, trata-se de um filme excelente em seu olhar à juventude, através de um trabalho seguro de câmera e direção de atores. A incorporação simultânea de elementos narrativos da animação Guaxuma (uma ficção autobiográfica da diretora Nara Normande) também pressentia uma capacidade ímpar de combinar poesia visual e naturalismo cinematográfico.
O novo projeto cumpre, em partes, as expectativas. A sequência inicial desperta grande surpresa, quando Sem Coração (Eduarda Samara) mergulha no mar durante longos minutos, até se deparar com uma imensa criatura. Desde o princípio, sugere-se uma ponte delicada entre realismo e fantasia. A própria existência da garota, cuja lenda supõe o coração arrancado na infância pelos médicos, costura as ideias de magia e preconceito, ou ainda realismo fantástico e olhar etnográfico.
Diversos elementos narrativos dos curtas originais se reproduzem no formato longo. Estão presentes a sequência da garota excluída, servindo de experiência sexual aos meninos do bairro no interior de uma piscina vazia; a cicatriz no peito; a vivência da pesca. De Guaxuma, constam o pai progressista e neo-hippie; a garota com medo de saltar sobre um buraco; e a própria dinâmica Nara-Tayra, restituída no nome Tamara. A homossexualidade da garota também desempenha papel fundamental no filme de 2023.
A capacidade reparadora do amor romântico atribui certo caráter inocente, mesmo ingênuo, ao filme. Sem Coração se torna coadjuvante da história que porta seu nome.
A este propósito, os diretores Tião e Nara Normande fazem com que a sexualidade constitua o principal fator de passagem à fase adulta. A fábula se dedica menos à amizade, como aparenta fazer a princípio, do que ao desejo sexual, à masturbação, aos primeiros beijos e amassos. Os conflitos com os pais e os dilemas a respeito da mudança de cidade constituem não-problemas ao longo da trama, que concentra todos os esforços na ciranda de pulsões. Por isso, na hora de invadir casas na região, o grupo de adolescentes logo se concentra no material pornográfico encontrado pelas caixas e armários.
Quanto aos afetos LGBTQIA+, o roteiro busca um olhar abrangente e generoso. Sugere a homossexualidade ou bissexualidade de três garotas, e acompanha a rotina de um garoto, gay assumido em uma sociedade conservadora. É uma pena que, para o garoto negro, reste exclusivamente a função narrativa de vítima de homofobia. Ele será perseguido, atacado, xingado, humilhado, espancado. Kaique Brito jamais possui sonhos, forças, talentos. O rapaz representa menos uma subjetividade complexa do que um lembrete constante da vivência em um país opressor às minorias.
Já os aspectos fantásticos se revelam tão competentes quanto desconectados do resto da trama. O sonho com a baleia, compartilhado entre as duas garotas principais, jamais exerce nenhum impacto significativo na história. Uma mão em chamas e a capacidade de entrar nas entranhas no bicho para se abrigar (um retorno ao útero?) tampouco deixam consequências dignas deste nome. A baleia, imponente em termos de imagem e direção de arte, soa como um parêntese, uma digressão retórica.
A própria Sem Coração se torna coadjuvante da história que porta seu nome. É curioso como o roteiro nunca decide ao certo onde depositar o ponto de vista, ou por qual olhar seguir a narrativa. Obras corais, movidas, por meia dúzia de protagonistas, podem ser perfeitamente coesas em seu discurso e perspectiva, no entanto, o drama brasileiro tateia o seu caminho. Às vezes, se cola a Tamara, mas depois, esquece a garota na hora de se focar em Galego ou no amigo gay. Sem Coração possui poucos sonhos, ou ainda uma história pregressa e uma função social e afetiva para além da relação com os garotos brancos e ricos. A montagem dança na tentativa de costurar trajetórias que nem sempre convivem bem juntas.
A aproximação mais óbvia entre elas diz respeito às diferenças de raça e classe: Tamara é branca, de classe média, enquanto Sem Coração é negra e pobre. A imagem didática de ambas se deslocando na estrada, lado a lado (uma, num ônibus confortável, a outra, na boleia de um caminhão) sublinha uma desigualdade suficientemente explícita até então. Aqui, busca-se superar os problemas sociais por via do afeto: o garoto gay recebe afagos; o menino espancado pelo pai também é abraçado em público; as duas meninas lésbicas tocam-se as mãos e se beijam.
A capacidade reparadora do amor romântico atribui certo caráter inocente, mesmo ingênuo, ao filme. Os curtas-metragens possuíam um caráter cru, amargo, muito mais forte na exploração sexual de Sem Coração e na morte da melhor amiga, por exemplo. O amor não resolvia nem apaziguava os corações. Desta vez, em contrapartida, entram em cena uma série de falas escritas em excesso, do tipo que se encaixa mal na embocadura dos atores. Sublinham a veracidade do amor, o acolhimento incondicional dos pais.
Esta tendência aproxima o longa-metragem de uma jornada infantojuvenil — voluntária ou não. A discussão sobre a partida de Tamara ao som de “Please Don’t Go”, a trilha sonora dedilhada ao violão para denunciar a tristeza do ataque homofóbico e a simplicidade do uso da trilha sonora (a canção escutada por mãe e filha, num plano fixo, frontal e simétrico) denotam certa redução das complexidades em busca de maior alcance de público.
Até por isso, as atuações dos personagens coadjuvantes soam um tanto deficientes, e mesmo a grande Maeve Jinkings é mal aproveitada. Se o resultado não impressiona devido ao olhar bem-comportado e idealizado para os romances, ele convence nas sequências de vertente antropológica. As cenas de pesca, a travessia dos jovens sobre os galhos expostos e a escalada das cercas transmitem uma beleza simples e eficiente, que talvez pudesse representar a complexidade psicológica dos personagens de maneira mais potente do que uma imensa baleia.