Sinfonia de um Homem Comum (2022)

O artista político, o político artista

título original (Ano)
Sinfonia de um Homem Comum (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
85 minutos
direção
José Joffily
Com
José Maurício Bustani, Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula da Silva, Celso Amorim
Visto em
Festival É Tudo Verdade 2022

A princípio, José Maurício Bustani é apresentado na condição de pianista. Ele prepara uma apresentação, esbraveja contra a qualidade do piano colocado no palco, cruza os braços até ter o instrumento substituído por outro. O diretor José Joffily insiste em revelá-lo como um negociador dotado de temperamento forte e ciente de suas habilidades. Esta é uma bela e irônica apresentação: através de uma cena relacionada à música, descobrimos qualidades fundamentais deste diplomata.

As duas características permanecem unidas no longa-metragem até o final. Entre a arte e a política, o autor enxerga uma afinidade no rigor, na cadência, na autoexposição a um público seleto. A melodia do piano banhará tristes imagens da guerra no Iraque, e servirá a ditar o ritmo de uma votação manipulada pelos Estados Unidos contra o brasileiro. Excelente ideia: o filme faz com que Bustani crie, involuntariamente, a trilha sonora de sua própria vida, dos momentos de leveza a outros de tensão.

Esta abordagem sugere que música e política são duas práticas indissociáveis e análogas — algo que reflete, conscientemente ou não, o gesto do próprio cineasta ao realizar uma obra contrária à invasão no Iraque. Não resta dúvida de que Joffily se identifica com o protagonista, a quem fornece o protagonismo e a possibilidade de controlar o discurso relacionado ao período turbulento à frente da OPAQ.

Sinfonia de um Homem Comum (2022) jamais se disfarça de apresentação neutra, nem distanciada do tema. O diretor oferece uma perspectiva de cumplicidade com seu herói, permitindo inclusive que refute a opinião de terceiros ao assistir a testemunhos exibidos numa tela. A palavra final será de Bustani, e todos os convidados, de Lula a FHC, passando por representantes norte-americanos, são trazidos ao projeto na intenção de fazer coro ao discurso extraoficial, porém pessoal e interno, do ex-diplomata.

Em paralelo, o diretor decide transformar sua obra num filme-processo, desenvolvendo-se ao vivo, diante dos olhos do espectador. Isso significa que não enxergamos apenas os fatos passados, orquestrados por uma montagem centralizadora, mas também os improvisos de percurso. Numa cena, Bustani chora ao reler sua carta de afastamento da OPAQ. Em outra, anda a esmo pelo apartamento, sem condicionamento da direção. As imagens revelam os microfones, as câmeras, o próprio Joffily sentado ao lado do protagonista, e depois, em frente a outros entrevistados. Sessões via Skype ocorrem com a câmera flagrando o dispositivo conforme o papo se desenvolve.

O diretor decide transformar sua obra num filme-processo, desenvolvendo-se ao vivo, diante dos olhos do espectador.

Tamanha proximidade atenua a hierarquia esperada entre o diretor e seu tema de estudo: ao invés de uma narrativa sobre Bustani, temos uma obra elaborada com Bustani. O diretor se faz presente inclusive na narração em off, tanto para explicar passagens históricas quanto para precisar suas decisões artísticas, caso da viagem a Haia, na Holanda. Sempre desperta alguma curiosidade quando cineastas se colocam na função de narradores, visto que a direção já constitui, por si própria, um controle dos rumos narrativos. Estas vozes não preparadas como aquelas de um ator soam como uma tentativa suplementar de dominar o ponto de vista, e de se converter em personagem da própria jornada — o autor se torna criador e criatura.

Talvez esta voz condutora provoque os aspectos mais frágeis da experiência. Embora apareça de modo comedido, ela surge para suprir uma lacuna de informações que nem as imagens, nem o som dos entrevistados consegue representar por si mesmos. As explicações didáticas acentuam a incapacidade estética de transmitir parte do conteúdo histórico de maneira autônoma. Além disso, a estratégia de justificar suas decisões narrativas ao público provoca estranhamento: por que o autor teria sentido a necessidade de prestar contas ao interlocutor? Afinal, todos os seus passos soam bastante orgânicos à pesquisa histórica e pessoal inerente ao tema.

Ressalvas à parte, Sinfonia de um Homem Comum segue a estratégia bem-sucedida na carreira do cineasta em associar o público e privado, o local e o universal. Joffily tem efetuado uma costura sofisticada entre histórias pessoais e conflitos de nações, de modo a propor um cinema político capaz de refletir, contemplar, respirar junto aos protagonistas demasiadamente humanos. Somem os gritos de justiça, os slogans de combate e o senso de urgência tão propícios às vozes que se creem detentoras da verdade. Embora ostentem um posicionamento firme, Joffily, Bustani e os demais personagens o fazem com distanciamento e maturidade.

Este retrato do protagonismo brasileiro nas principais decisões da política internacional, até pouco tempo atrás, serve de contraste com a rápida deterioração de nossa imagem no cenário macro, desde a eleição de Jair Bolsonaro. Que chanceler ou representante de 2022 ocupa um cargo de importância equivalente àquela de Bustani, dezenove anos atrás? Existe um abismo entre os intelectuais que ousavam enfrentar a Casa Branca, apesar das ameaças de retaliação, e os fanáticos da extrema-direita que aparelham os órgãos governamentais atualmente — lembrando que a OPAQ, ontem e hoje, constitui uma instituição independente de governos locais. Joffily faz o que lhe cabe, enquanto cineasta, retomando a discussão sobre nosso papel frente às falsas guerras imperialistas de um passado recente, pelo prisma da reflexão e da música.

Sinfonia de um Homem Comum (2022)
7
Nota 7/10

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