Sinfonia de um Homem Comum: “O que Bustani me contou sobre 2002 foi difícil de acreditar”, confessa José Joffily

A partir de 9 de fevereiro, os cinemas brasileiros exibem o documentário Sinfonia de um Homem Comum (2022), de José Joffily. Desta vez, o diretor retoma uma história importante na política nacional recente: o papel do diplomata brasileiro José Maurício Bustani, quanto tentou denunciar a farsa da invasão norte-americana ao Iraque. O diretor-geral da OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas) feria diretamente os interesses dos Estados Unidos, tendo sofrido ameaças até ser afastado do caso.

O filme traça um olhar amplo a respeito da diplomacia e da política, costurando os diferentes momentos em que o Brasil exerceu forte influência em decisões mundiais, em especial durante os governos Fernando Henrique e Lula. Em paralelo, investiga a paixão de Bustani pela música, tendo se apresentado como pianista em concertos ao longo de toda a sua jornada.

Sinfonia de um Homem Comum

Esta também representa uma nova empreitada de Joffily em histórias que associam a experiência de um indivíduo comum com a política dos países, após Soldado Estrangeiro (2019) e Caminho de Volta (2015). O cineasta explica os motivos para este cruzamento entre cidadãos e nações:

“Isso torna a história mais interessante. Todos nós temos visto essa tragédia com os Yanomami, e eu fico intrigado. As notícias informam que ‘morreu um Yanomami’, ‘morreu um bebê’. Qual é o nome desse bebê? O conhecimento da pessoa, com o nome, a trajetória, a história de vida é muito mais interessante. No caso do Bustani, eu sabia bastante, porque éramos amigos de longa data, através do meu irmão. A história vista por ele, através dele, seria muito melhor. O que ele me contou sobre 2002 foi difícil de acreditar: era rocambolesco. Os filhos dele foram ameaçados de morte, ele sofreu pressão do John Bolton, no sentido ‘Ou você sai, ou a gente te demite’.” 

É difícil cair a ficha que um diplomata americano possa ameaçar uma pessoa, uma família, de morte.

No entanto, a ideia de fazer um filme a partir deste episódio não surgiu de imediato: “O tempo foi passando, e fatos que ele tinha me contado foram se confirmando. À medida que isso era verificado, eu relembrava a posição do Bustani. A situação foi absurda”, explica o cineasta.

Por mais que a gente tenha conhecido a truculência dos países hegemônicos durante a Guerra do Vietnã, é difícil cair a ficha que um diplomata americano possa ameaçar uma pessoa, uma família, de morte. E depois organizar a deposição do Bustani de forma tão maquiavélica, comprando votos dentro da OPAQ. Eu verifiquei essa história, o que era fundamental. Tudo aquilo foi provado em seguida: o interesse em invadir o Iraque alegando a existência de armas químicas, algo que o Bustani tentava brecar de alguma forma. Veio a declaração patética do Colin Powell: ‘Desculpa aí, foi um engano. Fui mal informado’. Morreram 600 mil pessoas; perderam trilhões de dólares. Aquilo tudo me soava absurdo”.

“Pensei então que deveria fazer um filme sobre isso”, ele justifica. “Primeiro, pensei num filme de ficção. Escrevi o roteiro de ficção, dediquei um ano a isso. Mas ele era caro para filmar. Dá vem certa aflição: acho que eu não conseguiria juntar aquele dinheiro, e demoraria mais dois ou três anos para fazer. Com o documentário, você sai fazendo, sai na frente. Nossa pequena equipe na Coevos, que inclui a Isabel Joffily e o Pedro Rossi, começou o filme sem ter dinheiro. Isso ia nos entusiasmando para seguir em frente, conseguir recursos e viabilizar o filme”

Sinfonia de um Homem Comum

Mas como a música se encontraria com a diplomacia? Esta não parecia uma costura óbvia de traçar no cinema. Joffily explica a relevância deste aspecto:

“Para mim, era um espanto que o Bustani, com 77 anos, tenha preservado uma paixão alimentada desde os sete anos. A música atravessou toda essa carreira de diplomata. Setenta anos se passaram, e a paixão dele é a mesma. Ele sempre foi um homem muito teimoso, e me perguntava: ‘Por que está colocando música aqui? Por que está me gravando tocando piano, por que o concerto?’. Eu respondi: ‘Bustani, você toca a música, e eu dirijo o filme’. Eu não sabia exatamente como isso se encaixaria. Sabia que o fato de ele ser um músico daria um estofo para o personagem, uma camada muito interessante — não apenas o fato de ser músico, mas de ter mantido essa paixão ao longo do tempo. A irmã dele é pianista profissional. Tudo isso foi conferindo ao personagem uma personalidade própria, atraente. Era importante que isso fosse conduzido de forma a interessar o público”.

Ele me perguntava: ‘Por que está me gravando tocando piano, por que o concerto?’. Eu respondi: ‘Bustani, você toca a música, e eu dirijo o filme’.

Questionado sobre o status atual da diplomacia brasileira, após a gestão Bolsonaro, o cineasta possui uma postura firme: “A gente ficou quatro anos destruindo toda a teia de contatos que foi construída com discussões intermináveis e grande esforço do Itamaraty”

“Algo similar ocorreu com o cinema: houve um desejo profundo que a gente não produzisse mais. Por sorte, já tínhamos levantado recursos antes, e já estava em curso a produção de filmes. Mas levando esse posicionamento ao mundo da diplomacia, o Brasil estava isolado. As revelações decorrentes dos sigilos devem aumentar ainda mais. Podemos criticar a postura terrível dos Estados Unidos no Iraque, mas os países hegemônicos sempre tentam dominar. Eles tentam fazer dos países mais fracos um quintal”, resume Joffily.

Sinfonia de um Homem Comum

A reflexão se estende aos conflitos atuais: “Isso nos ajuda a pensar na questão da Rússia e da Ucrânia hoje. Como funciona isso? Os Estados Unidos manipulam a OTAN, ou não? Quais são os interesses? Essa incorporação da Ucrânia à Europa transforma a fronteira direta da Ucrânia com a Rússia, o que representa uma ameaça? Estas questões estão presentes. Nós, tentamos, e conseguimos, em grande parte, atualizar a história do filme”.

“Por exemplo, houve a questão da Síria. A OPAQ enviou inspetores à Síria, eles voltaram do bombardeio com uma análise da situação, e a própria OPAQ reescreveu os depoimentos deles, falseando tudo o que tinham estudado ao longo do tempo, em terreno. Eles descobriram, por exemplo, que as bombas não foram jogadas do espaço aéreo, mas manipuladas e colocadas no território de determinado alvo. Tentamos atualizar a história do Iraque. Aliás, chegamos agora a 20 anos de destruição do Iraque. O que aconteceu com o país? Ele praticamente desapareceu internacionalmente, é um país manobrado por umas dez empresas de petróleo”.

Isso nos ajuda a pensar na questão da Rússia e da Ucrânia hoje. […] Nós, tentamos, e conseguimos, em grande parte, atualizar a história do filme.

Curiosamente, Sinfonia de um Homem Comum encerra um círculo pessoal de Joffily com a Organização das Nações Unidas: “Quando era jovem, eu morava em Nova York, e trabalhei como office boy na ONU. É curioso: minha mãe dizia com muito orgulho às amigas que o filho dela trabalhava na ONU. Na realidade, eu trabalhava no porão, sequer visitava os andares de cima. Eu tinha a tarefa de jogar fora, no fogo, os documentos já microfilmados. É curioso”

Com distribuição da Bretz Filmes, o documentário já está em cartaz nos cinemas.

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